quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Schengen

"Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança" - Benjamin Franklin.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O "Podemos" de Pablo Iglesias: queremos ou não queremos?


Há várias diferenças entre o "Syrisa" de Tsipras e o "Podemos" de Pablo Iglesias. Mas há também vários pontos em comum: nos pressupostos ideológicos, na praxis de intervenção política e na capitalização da sua base social de apoio. Os dias finais da campanha de Tsipras ("não tenham medo") reproduzem o desafio mil vezes repetido por Iglesias: "não temam a mudança".
 
Confesso que - porventura erradamente (mas o futuro o dirá) - me interessa bem mais o "PODEMOS" espanhol. E há várias razões para isso: desde logo, a circunstância de que um "movimento" do género tem muito mais significado num país com o peso e a importância de Espanha no contexto europeu.
Por mais voltas que se dê, a Espanha não é a Grécia. E isso justifica que se olhe para Pablo Iglesias Turrión com atenção. Com a mesma atenção que me mereceu o facto de que Iglesias estava ao lado de Tsipras no último comício do Syrisa - e num lugar de destaque, chamado ao palco para estar ao lado do líder grego.


Neste momento, as sondagens dizem que o "Podemos" se arrisca a ser a força política mais votada em Espanha.
 
Há algo, a meu ver, essencial quando se trate de formar uma opinião sobre Iglesias. Porque se trata de perceber "quem é" e "o que vale" um homem que faz da afronta a sua pedra toque, é impossível bastarmo-nos com análises de outros, ou com discursos indirectos (muitas vezes) requentados, para percebermos quem (e o que) está em causa. É preciso ouvir Pablo Iglesias - ele mesmo - e vê-lo: ver como age e como se comporta.

Foi isso que tentei fazer porque, hoje, isso é muito fácil: há horas e horas de Pablo Iglesias disponíveis na internet - em discurso directo, ao vivo e a cores.

Comecemos pela apreciação - forçosamente subjectiva - que faço do homem.

Pablo Iglesias é, indubitavelmente, muito inteligente. Professor da Universidade Complutense de Madrid, formado em Direito e especializado em Ciência Política, sabe muito bem o que diz e, sobretudo, como diz.
Há nele as virtudes encantatórias do bom orador - sabe falar a uma audiência, convence mesmo quando os argumentos têm pés de barro, entusiasma-se nos momentos certos e bebe de convicções que facilmente seduzem. Pablo é um líder, ponto final. E um líder moderno, porque sendo teimoso na argumentação, tem uma aparente calma olímpica para ouvir os outros (malgrado, na verdade, não os ouça) e sabe usar a arma do populismo (que cavalga com inteligência, por saber que depende dele) como um mestre.
Há outras coisas em Pablo que são importantes nos dias que correm (não vale a pena enterrar a cabeça na areia): Pablo tem bom aspecto e é magnético na voz e na postura. Usa piercings quando pode e uma gravata distendida quando precisa. É jovem e transmite uma força escassa nos dias que correm: ele - pelo menos aparentemente (e a imagem, hoje, é quase tudo) - "acredita".

É preciso ter em vista que, em Espanha, o debate é muito mais agressivo do que, por exemplo, em Portugal. Mesmo nos programas de maior audiência dos grandes canais privados, berra-se a dicutir política e desferem-se golpes mortais nos adversários. Alguns dos jornalistas mais conhecidos, por exemplo, são chamados para os programas de debate e tomam partido: atacam verrinosamente os outros intervenientes e tentam partir para o massacre.

Foi neste contexto que comecei a apreciar Iglesias e a tentar percebê-lo.
As primeiras coisas que vi de Pablo Iglesias foi nestes debates (por exemplo, no "Sexta Noche"), sobretudo com Eduardo Inda e Alfonso Rojo. Mas mais: vi também os debates televisionados, em programas de grande audiência, com Esperanza Aguirre, do PP espanhol.
Há um traço comum em todos estes debates: uma superioridade avassaladora de Pablo Iglesias, sobretudo perante o mais insidioso dos adversários: Eduardo Inda.

Inda é um protótipo do jornalismo yuppie espanhol. Tem uma dentadura branca e reluzente, um cabelo impecável e geometricamente penteado, veste-se com fatos de bom corte e atira a matar. Mas perde em toda a linha perante Iglesias: no grotesco dos ataques e na violência dos argumentos pessoais - na antipatia da violência incontida.
Inda é a chave para perceber como não lidar com Pablo Iglesias e o seu populismo. É que - goste-se ou não - há um conteúdo programático defendido por Pablo. Há ideias e conceitos. E, por isso, não é possível tratá-lo como um mentecapto ou um esbilro de regimes populistas. É preciso discutir o âmago com ele e tentar demonstrar que não tem razão.
Eduardo Inda não faz nada disto: ataca Pablo pessoalmente.

Dou um exemplo (que também mostra as diferenças com Portugal): o "Podemos" elegeu cinco (!) deputados ao Parlamento Europeu nas últimas eleições. Todos estes deputados - incluindo, obviamente, Pablo - ganham o salário de um deputado europeu (cerca de 18 mil Euros). Mas amealham apenas cerca de 1.930 Euros desse pecúlio (cerca de três salários mínimos em Espanha) por mês (sendo o excedente entregue o obras de solidariedade social ou, salvo erro, ao financiamento do partido ou do "La Tuerka") e viajam sempre em "turística" nas suas deslocações a Bruxelas e Estrasburgo.
Deixando agora o populismo disto de lado (irei lá mais tarde), convenhamos que não se trata propriamente de apenas dizer que o ordenado de deputado europeu é um "escândalo" mas, mesmo assim, meter o tal ordenado no bolso (há exemplos disso por cá). O que me interessa agora observar é como Eduardo Inda ataca isto: impante, diz a Pablo que é da mesma "casta" que ataca porque "cobra" ("ganha", em espanhol) 18.000 Euros. Ou seja, segundo Inda é irrelevante que Pablo só amealhe para ele, efectivamente (e com provas que Inda não se atreve a pôr em causa), 1.930 Euros. Mais: segundo Inda, Pablo viaja, por vezes, em "executiva", pois é isso que "fontes" secretas lhe afiançam. Mas Inda não é capaz de revelar uma única dessas fontes, nem de mostrar uma única fotografia (e isso, com os telemóveis de hoje, seria muito fácil) que comprove o que afirma, perante a indignação - sempre segura e contida - de Pablo (que lhe diz, com toda a calma e firmeza, que "mente").



Isto não se passa só com Eduardo Inda - passa-se também com outros (Francisco Marhuenda é um exemplo mais soft) - mas serve de ilustração que demontra bem o modo flagrantemente errado como os opositores de Pablo, de estopada em estopada, o ajudam a agigantar-se. A única maneira de derrotar Pablo Iglesias é vencê-lo nos argumentos, discutir com ele o que vale a pena e pôr a descoberto alguns dos embustes ideológicos de que se serve. Respeitando-o, claro, porque, caso contrário, ele levará a melhor.

Mas vejamos sumariamente o que sustenta Pablo Iglesias, num país em que o desemprego (mesmo o desemprego jovem) tem números assustadores, onde a carga fiscal aumentou avassaladoramente nos últimos quatro anos, onde os níveis de evasão fiscal são bastante superiores aos da Europa "desenvolvida", onde grassam escândalos políticos e financeiros de corrupção (o deboche das "Cajas" é comummente focado), onde as tensões idependentistas (sobretudo a catalã) têm um peso muito significativo, onde o problema do terrorismo etarra nunca se pacificou definitivamente, onde a educação pública (sobretudo universitária) está cada vez mais cara e onde a emigração de quadros qualificados não tem parado de aumentar.

1. Pablo Iglesias começa por uma definição (não) ideológica essencial, de modo a abarcar todos: define o "Podemos" como um "movimento" (para ele, é fundamental este epíteto, claro) que não é de esquerda, nem de direita. Segundo ele, essa dicotomia não faz agora sentido: o que é preciso é resolver problemas.
Mas Pablo assume-se, pessoalmente, como sendo de esquerda (e nem outra coisa era possível).

2. Segundo Pablo Iglesias, o fundamental é eliminar a "casta". E por "casta" entende todos os que estão no poder, os que dominam o aparelho político, ao qual não podem aceder os "normais" cidadãos.
Para ele, o funcionamento da democracia está obliterado pelas "portas giratórias" que transportam os políticos dos seus cargos públicos para as grandes empresas privadas (o que personifica em variadíssimos exemplos, desde logo os de Felipe Gonzalez e Aznar, para cobrir todo o espectro político do poder).

3. Pablo é partidário, no plano económico, de uma política estadual "expansionista" e de "investimento". A única, segundo ele, que permite acalentar a certeza de um desenvolvimento sustentado e de cariz social: para ele, a educação e saúde públicas gratuitas são essenciais. Assim como é essencial evitar que os jovens espanhóis sejam formados para serem "empregados de mesa" dos povos do norte da Europa.

4. Defende também a "renda básica" e quantifica-a: 1.000 Euros de rendimento mínimo garantido pelo Estado para todos os que têm rendimentos inferiores.

5. Pablo não se furta a números: a despesa pública espanhola traduz-se em cerca de 46 por cento do PIB do país. No seu programa, a despesa deveria ascender a 50 por cento do PIB e, com isso, seria possível pagar tudo o que propõe.

6. Para combater o problema de evasão fiscal, sustenta que é absolutamente necessário formar mais inspectores tributários e dotá-los de instrumentos efectivos (técnicos e legais) para que possam actuar.

7. Os exemplos políticos que aponta são os da Venezuela Chavista (e, agora, de Maduro) e do Equador de Correa. A influência latino-americana é uma herança que, em Espanha, tem também um significado diferente daquele que, por exemplo, tem entre nós a lusofonia.

8. A inspiração da (sua) esquerda é demasiado forte para que condene a ETA sem tergiversar. E, quanto às aspirações catalãs de independência, diz apenas que, enquanto democrata, o futuro da Catalunha - pese embora gostasse de que continuasse espanhola - tem que ser decidido, livremente, pelos catalães.



Pablo sabe do populismo do que defende. E, nas entrelinhas, quase que assume que não tem outro remédio para que o seu projecto político possa ser um projecto de poder.
Isto é, para ele, fundamental: o "Podemos" não pode ser um projecto romântico e idealista, como o das esquerdas radicais europeias tradicionais. Tem que corresponder a uma ambição prática e operativa de poder - para que as coisas possam mudar.
Isto significa dizer, na prática, que, na sua inteligência, Pablo Iglesias sabe que usa do populismo. Mas assume-o como a arma política que um movimento com as características do "Podemos" se vê forçado a usar para combater a desproporção de forças com os poderes políticos instalados.

Ainda antes de uma apreciação do que Iglesias defende, um ponto de ordem: a diferença em relação a partidos como o BE português é abissal.
Se bem que o BE se congratule e procure colar-se aos êxitos do "Podemos" (e do Syriza) a diferença é substancial: o BE viveu sempre de uma cultura de anti-poder; o "Podemos" de Iglesias é um projecto de poder. Tem objectivos concretos, almeja governar, avança propostas do que quer fazer, arrisca números.
Guterres explicou um dia, no parlamento, a Louçã que o BE nunca seria mais do que nada porque jamais sairia da irresponsabilidade do anti-poder. Tinha razão, como o futuro demonstrou. E, de certo modo (ainda que, evidentemente com uma outra retórica), foi isso mesmo que Pablo Iglesias explicou aos bloquistas na sua última convenção nacional, para a qual foi a estrela convidada (a intervenção de Pablo também está disponível no youtube).

A). Sem especiais preocupações de ordenação, comecemos pela ideia da "casta".

Esta é uma ideia especialmente sedutora (com integral honestidade, falo por mim). Mas falsa, claro.
No fundo, é a tradução da velha ideia de que "são sempre os mesmos a mandar".
É uma ideia maniqueísta (há o "nós" e o "eles") que assenta numa generalização idiota. Pura e simplesmente, não é verdade que todos os que ascendem ao poder político o conseguem fazer por pertencerem a um certo "grupo". É muitas vezes verdade, mas nem sempre.
Quer em Espanha, quer em Portugal, há numerosos exemplos do contrário.
É certo que o passado recente mostra que pertencer a uma juventude partidária é condição quase sine qua non para, depois, mandar. Mas não é sempre assim. E mesmo os que nutrem profundo desprezo pelo estado actual dos partidos do poder ou pelas respectivas juventudes partidárias têm que admitir que ainda há mobilidade suficiente para que a competência política e técnica se afirme extra-partidos.
Dir-se-á: é muito difícil isto suceder. Mas esse é um desafio novo, que obriga os que escolhem um caminho diferente a serem ainda melhores e os obriga a não ignorarem as qualidades e competências que têm aqueles que conseguem, dentro da selva dos partidos, levar a melhor.

Gosto da ideia de "casta" quando ela tem que ver com a pura crítica a uma certa cultura do exercício de funções públicas com poder.
De facto, o exercício de funções políticas de topo deixou de ser um "fim", para passar a ser um "meio". Se for isto que o "Podemos" quer criticar quando fala das portas giratórias entre os gabinetes do Governo e das grandes empresas, posso compreender e estar de acordo. Sucede que este não é um problema só político, mas eminentemente cultural. E que se combate, ao contrário do que defende demagogicamente o "Podemos", com remunerações altas para os responsáveis políticos qualificados, em vez dos típicos baixos salários praticados no sector público em comparação com os altos cargos do sector privado.

Em Portugal, por exemplo, ninguém me consegue explicar para que é que precisamos de 230 deputados a ganharem "pouco" (se bem que possam - e mal - acumular, outras funções). Preferia metade (ou menos) dos deputados (até porque o carreirismo partidário perderia algum propósito, sem prejuízo para a representatividade proporcional), pagando-lhes uma remuneração avultada, que os responsabilizasse e elevasse, quase decerto, o seu nível médio de qualidade.

B). E o que dizer da recusa de uma definição do "Podemos" como sendo de "esquerda" ou de "direita"?

Consigo perceber qual é o objectivo de Pablo Iglesias: o alvo é identificar que, hoje, não há diferenças substanciais na praxis do PP e do PSOE (tal como, em rigor, essas diferenças praticamente não existem entre o PS e o PSD portugueses): o modo como exercem o poder é, basicamente, o mesmo e as suas culturas de poder acabam por ser, depois de feitas as contas, muito semelhantes (em Portugal, é aliás possível dar exemplos de governos de "centro-esquerda" que governaram mais "à direita" do que governos do "centro-direita" e vice-versa).

Olhada a prática e o discurso enquanto estão no poder (e é isso que interessa porque, na oposição, diz-se quase de tudo), não é possível discernir diferenças substanciais entre os partidos do poder, entre a chamada direita e a esquerda "moderadas". No momento do voto, tem-se tratado, fundamentalmente, de escolher pessoas (e de punir - e desinstalar - quem, ciclicamente, exerceu o poder). Só isso - o que é muito pouco.

Basta juntar a este estado de coisas a falta de horizontes, ou a ausência completa de esperança, de uma geração inteira que se considera com o futuro já "perdido", para que a eficácia de um discurso destes - como o de Pablo Iglesias - seja amplíssima. No fundo, nesta parte, o alvo não é dizer que "podemos" (ou que - como dizia Obama - "yes, we can"), mas satisfazer os que pensam "we don´t care anymore".

A verdade, porém, é que a dicotomia esquerda-direita não está morta. Bem ao contrário, o que ela precisa é justamente de ser rediscutida e refundada. À luz de hoje e do futuro.
Bem sei que é uma discussão difícil, à qual dá muito jeito escapar. Mas é essa que justamente releva: hoje e amanhã, mais do que nunca, interessa redefinir o que é a esquerda e o que é a direita.
E é aqui que entra uma das burlas de Iglesias.
Ele sabe disto muito bem - não há nada que o interesse mais do que este combate ideológico. E é tão de esquerda que, a título pessoal, não lhe passa pela cabeça negar a sua filiação ideológica. Sucede que tenta negar a filiação ideológica do seu "movimento", que, sendo evidente - e por ser negada - passa a ser envergonhada.

Claro que para pescar votos em todo o lado - e num eleitorado deprimido e desmoralizado - convém dizer que não se é de direita, nem de esquerda: a massa de desempregados não quer saber, nas circunstâncias actuais, o que isso é. E compreende-se que assim seja.
O que já não se compreende - e aquilo que não pode aceitar-se - é que Pablo, que é inteligente, politicamente culto e esclarecido, se louve numa burla fácil de desconstruir: o "Podemos" é claramente de esquerda (como o seu líder, do qual mal se distingue) e basta olhar para as medidas que defende e se propõe tomar para que essa conclusão seja tirada facilmente.

Entre esquerda e direita - mesmo na recompreensão que há que fazer delas - não há como fugir à preferência pela igualdade ou pela liberdade. Quase tudo o que Pablo e o "Podemos" propõem é um apelo a uma maior igualdade, ou, antes, a promessa de um combate sem tréguas à desigualdade (combate à evasão fiscal dos mais ricos, por terem mais meios para fazerem planeamento fiscal; "renda básica" para todos; domínio público sobre os principais meios de comunicação social para "igualizar" o acesso à exposição pública; aumento das políticas "expansionistas" de investimento público e reforço das garantias de uma saúde e educação públicas universais e gratuitas; etc.).
Isto é de esquerda. E não há mal nenhum nisso. O único mal está em escondê-lo e em não o assumir. Populística e eleitoralisticamente, como bem se vê (para pescar votos em todos os quadrantes, numa opção verdadeiramente estratégica), o que, pesadas bem as coisas, significa também pertencer à tal "casta", tão constantemente repudiada por Pablo.

C). Não vou perder muito tempo a analisar a "renda básica" de 1.000 Euros para todos, que ficaria a cargo do Estado.
Nem subindo a despesa pública para 60 por cento do PIB (o que é impossível de ser feito), Pablo Iglesias conseguiria cumprir esta sua promessa aos espanhóis, a par das promessas quanto ao sistema nacional de saúde e da escola pública.
Bem sei que Pablo me iria retorquir com os países escandinavos. Mas mal. Primeiro, porque a Espanha não tem petróleo. Depois, porque nem nos países escandinavos é verdade que seja assim. E, por fim, porque os espanhóis.... não são do norte da Europa: não têm a mesma cultura (e, se calhar, ainda bem); não trabalham da mesma maneira (e, se calhar, ainda bem); não poupam na mesma medida (e, se calhar, ainda bem... para eles).

D). Faltaria uma análise ao problema da herança franquista, às posições tomadas quanto à ETA e ao separatismo catalão.
Não me sinto em grandes condições para a fazer porque não conheço suficientemente bem como estas questões são vividas em Espanha.
O que sei é que o lastro do franquismo em Espanha nada tem que ver com o que acontece, relativamente à ditadura anterior a 1974, em Portugal. As feridas não estão saradas da mesma maneira e muitas das clivagens em Espanha permanecem bem vivas: a guerra civil ainda não repousa no esquecimento e, por exemplo, continua  a haver ruas nas cidades espanholas baptizadas com o nome de heróis do franquismo (apesar de haver leis que o proíbam); o próprio PP, actualmente no governo, foi fundado por um homem que pertenceu ao regime de Franco (isso, cá, no pós-25 de Abril, nunca ocorreu).

Falo agora disto porque este me parece ser um contexto crucial (que não pode ser desligado da forma peculiar como se verificou, em Espanha, a transição para a democracia) para perceber o melindre com que o "Podemos" de Pablo Iglesias sabe que lida quando tem que tomar posição quanto à ETA militar e quanto à questão catalã.
De facto, um movimento do género em outro país (por exemplo, em Portugal) teria, no que a isto diz respeito, a vida bem mais facilitada, porque não teria de tomar posição quanto a tal.
O "Podemos" de Pablo Iglesias não tem a mesma sorte.
Por isso, e não podendo renegar a matriz esquerdista e anti-franquista da ETA, tem que poupar nos adjectivos quando condena o seu terrorismo (preferindo salientar que Aznar e Gonzalez sempre negociaram com a ETA) [Pablo Iglesias recusa-se, quando instado por Eduardo Inda, a repetir com este, numa cena televisiva épica, que "são assassinos"].
Quanto à Catalunha, Pablo diz apenas que prefere uma Catalunha castelhana, mas que os catalães têm o direito de escolher o que quiserem.

E). Queda apenas por comentar o incontido fascínio - assumido - pelo modelo da Venezuela Chavista. O que, de resto, me faz crer que a esquerda de Iglesias é um produto que facilmente degenera em totalitariamo.
Neste ponto, as dúvidas que eu ainda pudesse ter ficam desfeitas.
Não porque Pablo Iglesias tenha recebido financiamento - lícito e declarado - venezuelano (tal como Eduardo Inda lhe imputa). Mas porque o insuportável sectarismo político não pode defender o indefensável, nem tomar por modelo económico-político o que o populismo faz sempre: gostar tanto dos pobres, que os multiplica.

F). Em suma:
O "Podemos" de Iglesias (e não hesito em dizer que "pertence" a Iglesias porque, como todos os movimentos do género, faz-se à volta do seu líder: Juan Carlos Monedero não lhe é comparável) constitui caso muito mais sério do que o Syriza de Tsipras. Por várias razões.

A Espanha é um país muito importante da União Europeia e da Zona Euro.
O populismo de Iglesias é perigoso, porque Iglesias é um homem sagaz e acredita nele mesmo, sem se importar de usar, inteligentemente, a demagogia como arma, face a um povo incrédulo e sem esperança.
As referências (agora, é Maduro) e modelos de Iglesias fazem temer o pior.
E, em acréscimo, a Iglesias não parece importar o irrealismo do que, em matéria económica, advoga. O populismo é, para ele, só uma arma, e bem manejada.

Junta-se a isto um certo modus operandi - que Iglesias não renega - que faz recordar outros tempos e a forma de ascenção (também democrática) de outros regimes na Europa da década de 30: a prática do "escrache" (manifestações e perseguições populares em frente às casas dos políticos que tomaram decisões "contra o povo").

G). Em face disto, dir-se-ia que o melhor seria que o "Podemos" não existisse.
Não é verdade.
O "Podemos" é apenas o efeito. Não é a causa.
O "Podemos" é uma peça-chave do que é preciso que obrigue a uma refundação ideológica (sim, feita de direita e de esquerda): sem coisas como o  "Podemos" não é possível ver que o caminho não é este (aquele que o "Podemos" quer fazer vingar), porque não se acredita que haja quem, na grande Europa, com hipóteses de tomar o poder, o advogue.
E, claro, há coisas que o "Podemos" defende que é preciso lembrar quando se trata de inflectir a política europeia dos últimos anos: basta que o "Podemos" - por ter hipóteses reais de chegar ao poder - tenha contribuído para essa inflexão (por exemplo, para o Quantitative Easing) para que já tenha valido a pena.

Just my two cents.

27 de Janeiro de 2015

 

domingo, 25 de janeiro de 2015

O recente revés dos normopatas: o "quantitative easing".



Nos últimos anos, a normalidade exasperada e militante - patológica - é a maior enfermidade que grassa.
 
Falo daquela doença que acaba, quase sempre, da mesma maneira: com crianças estupradas e mortas na cave da própria casa, depois de 30 anos de escrupuloso cumprimento, à secretária, da mais ínfima "norma", sempre com as golas da camisa impecavelmente engomadas - "um brinco".
 
O "quantitative easing" é insuportável para esta gente.
 Desde logo, por ser um "easing" - um alívio.
 
A malta deve suportar as dores sem paliativos, atascada no trânsito de todos os dias: viemos ao mundo "para sofrer".
 
Estes normopatas acham magnífico que o homem que trabalhou 30 anos na City de Londres e que todos os dias, por meio de um expediente engenhoso, poupava, ilicitamente (!), algumas libras no bilhete do comboio que o conduzia, diariamente, ao trabalho seja implacavelmente punido. Afinal de contas, "mentiu". E ganhava perto de dois milhões de dólares por ano, por causa de uma carreira sem mácula, feita (também) com mangas de alpaca. Resultado, com aplausos de pé: despedido do emprego a que, afanosamente, se dedicava há décadas (sem queixas de nenhum cliente). E, claro, obrigado a indemnizar o Estado pela diferença em falta nos preços dos bilhetes de comboio. Com juros, evidentemente.
 
Isto passou-se em Londres. Mas a novidade é o aplauso eufórico da casta dos normopatas portugueses.
Dá direito a notícia no Expresso (em Dezembro) e a encómios nas caixas de comentários online. É uma espécie de repúdio pelo ser-latino e pela capacidade de improviso, o ataque à intuição, e a celebração de uma "normalidade" moral sem o mínimo desvio. É, enfim, a desproporção na sanção em todo o seu esplendor.
Melhor do que isto, só o culto da "eficiência" germânica - mas isso fica para depois, porque já não vende tão bem.
 
Para esta gente, o "quantitative easing" é, sobretudo, um pecado. É a renúncia aos sacrifícios que vinham purificando a "Europa". De certo modo, é a vitória daquele londrino do comboio.
 
Como os normopatas gostam sempre de dizer (puxando de um cigarro electrónico de que, ainda assim, se penitenciam, por terem feito jogging pela manhã), "eu explico".
 
Em primeiro lugar, a "Europa" não existe. Nunca existiu. Foi uma abstracção vossa, tal como historicamente se comprova. E, por um lado, ainda bem: não é esta "Europa" que se quer - frouxa e indecisa, uma graçola política, feita de líderes de trazer por casa.
 
Mas há coisas boas: Schengen, por exemplo. E sobretudo, uma coisa já velha, chamada "modelo social Europeu" - que não veio da tal "Europa", mas que antes estava já subjacente aos que insistiram em sonhá-la.
Sim. Essa coisa de ter serviços públicos de saúde com alguma qualidade, para quase todos, a preços muito baixos para os que a usam. E ter escolas públicas em que se investiu durante décadas (geralmente mal, é um facto, mas com sincero denodo) para formar gerações mais sapientes e preparadas (no fundo, mais livres). E, sim, essa coisa de ter um sistema de segurança social para todos, ainda que pobrezinho.
Não vejo outra coisa que nos possa distinguir do modelo americano.
Se a isto juntarmos a velha ideia (que me é tão cara) de liberdade, estamos também afastados dos chineses, o que convém.
 
O modelo social europeu é o ADN da Europa. O único traço identitário que - a ter existido algum - ainda não soçobrou.
O problema é que não temos dinheiro para pagá-lo.
E é aqui que os normopatas enchem o peito de ar.
 
Os normopatas preferem, de facto, o equilíbrio "efectivo" do orçamento (o tal dos 3 por cento do PIB): todo o tostãozinho de dívida, seja para o que fôr que ela tenha sido contraída (não interessa sequer se foi para investimento, porque investir é só para os "privados" - os tais do BES, do BPN, da PT e afins), tem que ser pago com impostos (era o que dizia Adam Smith, que a maior parte desta malta nunca leu, porque a Riqueza das Nações, para eles, só começou em Tatcher e em Reagan).
O que sobrar de despesa - a tal saúde, educação, segurança social, etc. - tem que se "cortar". Isto, claro, acreditando que "reformas estruturais" vão resolver o problema daqui a cem anos: o mercado de trabalho (onde pululam os "recursos" e os "colaboradores") tem que ser "liberalizado", "flexibilizado" e "agilizado": um mundo de sonho - em que se saltita de nenúfar em nenúfar - até à "normalização" total.
Frequentemente, chamam-lhe "processo de ajustamento". O problema é que nunca acaba. Tal como a dívida. E a resignação.
O Estado, esse, fica apenas para "guarda nocturno" - como nos tempo de Adam Smith (e, já agora, David Ricardo). Como se, por exemplo, Musgrave nunca tivesse existido.
 
É aqui que o velho problema da liberdade (que também a eles, normopatas, lhes é pretensamente cara, embora só a pratiquem no banho da manhã) se adensa: como não há um mínimo de igualdade, porque fica sempre tudo (como que paretinianamente) na mesma, não há hipótese de haver verdadeira liberdade.
Com efeito, sem educação e saúde que possa chegar a todos, o caso fica mal parado: até a sacrossanta segurança se vê metida em apuros.
E depois chega a deflação, com a qual o pessoal não consome, nem investe, o que é aborrecido - uma verdadeira "maçada", não fosse a estagnação deflacionista a manutenção conservadora "do que está" e, portanto, qualquer coisa que só agrada aos que se safam sempre a traficar em kwanzas salpicados de piche.
 
Mas há mais.
Supostamente, é também sempre preciso aumentar a "competitividade", diminuir os "custos de produção" e aumentar a "mobilidade".
São chavões deliciosos.
E, outra vez pretensamente, com carácter "estrutural" - não são "paliativos"!
 
É com isto que chega ao fim o tal banho das manhãs. Com as calças pelos tornozelos, já se vê. E com a confiança cega de que o caminho que a tal "Europa" tem percorrido, nos últimos anos, um dia, iria chegar a algum lado.
 
Falta um detalhe.
Esta malta quer a "Europa" com uma moeda fortíssima (como até agora). A valer dólar e meio, se possível. E eu percebo: de três em três anos, os normopatas "tiram" uma quinzena na praia. E querem que o destino escolhido (sempre noutro continente, e para onde, normalmente, levam dólares em carteirinhas atadas na parte de dentro das cuecas para não serem roubados) continue a sair-lhes baratucho. Porque é preciso poupar, claro.
 
Não se trata de esquerda, nem de direita. Trata-se do que está "certo", dizem eles.
 
O problema é que não tem uma moeda forte quem quer. Tem uma moeda forte quem pode (é que aí, sim, a produtividade releva - e muito).
Esta é daquelas evidências que se aprende nos bancos das universidades públicas (as tais que custam dinheiro aos contribuintes);
 
O problema é que o défice do orçamento não tem que ser medido pelo défice "efectivo". Há despesa pública em investimento (a velha despesa de "capital") que, saudavelmente (sim, saudavelmente), pode ser paga com empréstimos (e, pasme-se, nunca se conseguiu - nem em Oxford nem em Harvard - provar que o investimento público é menos útil e "reprodutivo" do que o privado, mesmo que por essas bandas não conhecessem a magnífica história recente das grandes empresas privadas portuguesas....);
 
O problema é que o "regresso à macroeconomia" foi feito com Keynes e não com os amigos de Fukuyama: a história vai continuar - e imparavelmente.
Sem Keynes - note-se - que é para outros futebóis;
 
O problema é que -  se outros argumentos não houvesse - o que a "Europa" fez na última década valeu nada: por isso cresce zero e vive mal. Mesmo "cortando", "apertando o cinto" e visando o (tal) "estrutural". Que nunca chegou. Nem ia chegar.
 
Foi isto (e o último argumento já basta) que levou a esta viragem que os normopatas tanto lamentam.
 
Ninguém de bom senso acha que o QE vai ser a panaceia de todos os males. As panaceias para todos os males são para a malta que pratica a liberdade, moderadamente, só pela manhã. As panaceias são a conversa do "estrutural", do "poupadinho" - da cáfila da "mobilidade" e da "contenção de custos", mas que não se importa de negociar em kwanzas, malgrado a sua superioridade "moral".
 
O QE é uma esperança como qualquer outra. Sim, esperança, essa palavra proibida. Esperança de que uma certa Europa pode, afinal, existir. Mesmo que gaste. Mesmo que se endivide. Mesmo que falhe, a tentar sair do desastre em que se enfiou.
 
O QE é uma guinada em direcção à esquerda moderada (sim, a verdadeira "social democracia" dos livros de ciência política), depois de anos de imobilismo serôdio neoliberal. É o regresso possível à política (diz-se "economia política", lembram-se?), essa coisa que os normopatas tanto temem. Que vai precisar dos bancos, o que faz temer o pior. E que não se basta a ele - QE - sozinho, porque ao contrário do que pensa uma outra esquerda, não pode ser feito com um abrir de pernas aos gastos em tudo o que mexe (vide o deboche português de 2008-2011): é que, nisso, até os alemães têm razão. Tal como Obama - muito mais do que eles - também tem (e Stiglitz, para quem tiver a bondade de o ler).

Em suma:
 
Pode ser que seja um regresso à retórica. E à política: a uma certa ideia de Europa.
E que não vai depender - para ser uma esperança - do quanto se vai gastar, mas de como se vai gastar.
Alea jacta est.