quinta-feira, 31 de março de 2016

Burro velho não aprende línguas

O acordo ortográfico é uma verdadeira dádiva.
Para encurtar razões, odeio o acordo ortográfico porque sim.
Não quero saber se faz sentido, estou-me borrifando para os argumentos que explicam a natural evolução da ortografia já tantas vezes ocorrida.
A verdade, nua e crua, é que o acordo ortográfico é daquelas coisas que merece uma moldura dourada: sem ele, haveria uma coisa menos com que eu pudesse embirrar à vontade, mesmo que sem razão.

É verdade que não devia estar em vigor à luz de inefáveis normas jurídicas? Não acho. Mas a verdade é que não quero saber.
É verdade que nenhum dos países signatários foi tão zeloso na sua implementação quanto nós? Claro. Mas é o costume. Somos frenéticos no que não releva.

Queria apenas dizer-vos o quanto me estou nas tintas para o acordo ortográfico. Nunca, mas nunca, vou escrever como ele manda.
Não vou argumentar. Quero simplesmente que vá para as urtigas e que morra longe. E, se quiserem, responderei em inglês: "call the police"!

Mas obrigado, acordo ortográfico... No emaranhado de cabotinice em que te enredas, há a feliz e brilhante manobra de as cabeças pensantes que se lembraram de te dar à luz terem ignorado Macau na sua... criação. Aqui não existe e é aqui que estou. Felizmente.
E ainda bem que todo o asneiredo de que me lembro mantém a mesma grafia: vou mantê-lo em "stock", num lugar especial.
E não, não estou mal disposto. Pelo contrário. Só tanto se me dá como se me deu.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Certezas matemáticas

É das poucas coisas na vida em que vigora a certeza matemática. Nunca falha.
Já tive a felicidade de trabalhar em vários locais, com imensas pessoas. Nos primeiros dias (e há testemunhas!), apenas catalogo de imediato um único género de sujeitos e de sujeitas, para os quais fico logo precavido: os que se revelam, sem notarem, pelos maus modos com que tratam os subalternos.
Na Europa, na Ásia, funciona sempre.
Normalmente meus "colegas", com as mesmíssimas funções, há um exército de idiotas que destrata os "funcionários", as "assistentes" (ou os "assistentes", embora estes sejam raros nos escritórios) e os membros do "secretariado".

É infalível: ou são autênticos débeis mentais, ou pertencem ao núcleo dos "esforçados".
Um "esforçado", apesar de cumpridor, tem zero de criatividade, é incapaz de fazer só por si e depende do rasgo e iniciativa dos outros para sobreviver (pelo que passa a vida a copiá-los). Como "sabe tudo" (a admissão da ignorância é uma qualidade que escasseia) tem como único propósito agradar ao "chefe".
É um mimo, porque normalmente o "chefe" tem um sexto sentido que o faz sentir uma certa repulsa por esta gente. Deve ser uma alquimia abençoada.

Vários anos a experimentar isto levaram-me a ser especialmente observador destas características na escolha das pessoas com quem trabalho. Quando posso escolher, claro.
O idiota que maltrata os que estão abaixo dele merece um tratamento implacável. Não que alguma vez vá aprender ou arrepender-se (é um defeito de carácter que não se corrige), mas impõe-se que se abatam sobre ele todas as maleitas e fúrias do capitalismo (que, aliás, servilmente aceita, sem hesitar ou questionar).
Não é apenas uma questão de não tratar mal os que estão funcionalmente "abaixo". É uma questão de os tratar especialmente bem.
É isto que é (e deve ser) revelador.

A única regra a seguir é nunca - em circunstância alguma - confiar neste exército de mentecaptos que faz abater o seu mau génio (aliás postiço) sobre os subalternos (exibindo simultaneamente uma enternecedora candura perante o "chefe").
Tudo porque são capazes de vender a mãe e oferecer a avó de brinde.

Mas o mais espantoso é a transversalidade desta prática: vi-a na Universidade (onde comecei a dar aulas novíssimo, com 24 anos e, confesso, me fazia alguma impressão o modo quase servil como éramos tratados por alguns), em escritórios de advogados, em empresas, em quase todo o lado. E há certamente muitos sítios, que nunca conheci, onde o mesmo fenómeno existe.
O denominador comum é a mania destes indigentes que pensam que "os piolhos comem alface e andam de avião".

Às vezes, fora o escárnio, chegam a dar pena.
É que, como que por justiça divina, acabam sempre mal. Ou logo, ou depois.
De facto, "quem nasce lagartixa nunca chega a jacaré".
Espera-se.

segunda-feira, 21 de março de 2016

O teu melhor


O desapontamento que os outros nos trazem é, muitas vezes, tão frustrante quanto simples de evitar.
Basta que nos contentemos com o facto de podermos saber que nos deram o seu melhor.

Quantas vezes damos o nosso melhor a alguém e isso é pouco? Muitas.
Mas a incompreensão do outro quando lhe demos o melhor de nós não pode ser a mesma de cada vez que nos dá o seu melhor.
Esta dádiva pode ser curta, cheia de defeitos e de hábitos que nos custam a suportar. Mas, nos casos em que pudermos saber que isto é o melhor que podemos receber do outro, já é muito.
Tento lembrar-me disto de cada vez que me revolto e dirijo a minha fúria contra o próximo que sei que tem afecto por mim.
Se souber que me dá sempre o seu melhor - que o tenta - já estou a dar-lhe também o meu melhor. Só porque o compreendo. E o mundo fica mais são.


domingo, 20 de março de 2016

Adeus / Goodbye

ADEUS
Era um dia normal em Istambul.
Uma mulher acena em sinal de adeus, momentos antes de uma bomba suicida ir pelos ares.
Não é só o terrorismo mas, de facto, há uma linha muito ténue (feita de espaço e de tempo) entre "o que é" e "o que virá a ser". Sempre.
E tu? Já te lembraste hoje que daqui a 15 segundos podes estar morto?
Aproveita o dia. Mas segue em frente.


GOODBYE
It was just another day in Istanbul.
A woman waves goodbye just moments before a suicide bomb goes off.
It is not only due to terrorism but there is a very thin line (made of space and time) drawn between the "present" and the "future". Always.
What about you? Have you realized today that you can be dead in the next 15 seconds?
Seize the day. But keep going.


http://www.express.co.uk/news/world/653956/Istanbul-suicide-bomb-video-woman-waves-goodbye

quinta-feira, 17 de março de 2016

O óbvio: Lula e Sócrates

Sim, já sei que aquilo que é vendido como "óbvio" se destina, as mais das vezes, a enfiar uma patranha em incautos. Mas há coisas que, de facto, se metem pelos olhos dentro.
1) É óbvio que é vergonhoso, ridículo e inaceitável que quaisquer escutas (pela intrusão que corporizam) sejam divulgadas à opinião pública. Mas daqui só deve (e pode) resultar a punição exemplar dos responsáveis pela sua divulgação. Não há outra consequência possível... o demais resvalaria para a bacoquice de imediatamente absolver os escutados só porque divulgaram o que disseram ao telefone;
2) A mais disso, quando as escutas são lançadas a público, isso significa que elas "estão aí" e que é impossível fazer de conta, no comentário político, que elas não existem: são factos e afirmações proferidas pelos visados, que não podem escapar ao juízo de quem as ouve. Não há como enfiar a cabeça na areia e só fica bem a quem apoiou ou apoia os escutados reconhecer isto mesmo;
3) Tornou-se praticamente impossível ter uma opinião livre e desengajada em qualquer parte do mundo: há um exército de próceres que segue e apoia cegamente certas personagens, sem se importar com o óbvio, defendendo o inacreditável, por mais que fira os olhos;
4) Para mim, não há esquerda nem direita no que é óbvio: os casos de Lula e Sócrates metem-se pelos olhos dentro;
5) Com o parágrafo anterior não me refiro à sua responsabilidade jurídico-penal: estou-me aliás nas tintas (até certo ponto) para ela. O que me interessa é a sua responsabilidade POLÍTICA, mesmo a que não é feita da prática de crimes (e que certamente deve transcendê-la);
6) Mas retornemos ao óbvio: há alguma circunstância em que possa defender-se que o que Sócrates já admitiu ter feito (e que possa não constituir crime - por exemplo, os pedidos de dinheiro incessantes a CSS e a compra de livros em quantidades industriais) possa escapar a um juízo meramente político? É óbvio que não. Livre (se for juridicamente inocente dos crimes que lhe imputam) ou preso (se tiver cometido crimes), é evidente que Sócrates se comportou de modo politicamente inaceitável (em qualquer das hipóteses) e que não tem condições (mínimas) para gerir a coisa pública (que é nossa): para chegar a esta conclusão, basta atentar no que o mesmo já teve que admitir como verdadeiro. Ponto final;
7) O episódio "ministerial" de Lula é tão patético que é óbvio que só pode pensar-se que este homem está disposto a tudo para não ser investigado. Factos são factos - e o juízo público e político sobre eles não pode (nem deve) ser evitado. As coisas são como são, mesmo quando há uma débil mental como Dilma (e que provavelmente não é culpada desta maleita de que padece) metida ao barulho;
8) É absolutamente evidente que, para além da responsabilidade criminal, impende sobre os políticos uma coisa diferente: a responsabilidade política pelos seus actos (e que dispensa os requisitos exigíveis para a punição criminal): ninguém obrigou os políticos a serem políticos - escolheram este caminho; lidem, pois, com as consequências da função. É a vida;
9) Mas o que é mais óbvio (e mais impressiona) é o exército de pessoas que se dispõe a tudo para contra-argumentar perante o óbvio. Esqueçam! Isto não é esquerda nem direita: é corrupção. E há corrupção grotesca (e pilha-galinhas também) quer à esquerda, quer à direita: a corrupção não tem cor. Assim como o patético e o grotesco também não.
Isto não é futebol. Não faz sentido defender a todo o transe as pacovinices e os roubos de um líder. Isto é política. Isto somos todos nós.
Chega de sectarismos bacocos. Aceite-se o que é óbvio.
Ficamos todos gratos. E a respirar melhor. Porque é óbvio.

quarta-feira, 16 de março de 2016

15 ANOS

Um estudante norte-americano decidiu ir, com amigos, para uma passagem de ano... em Pyongyang.
Foi, desde logo, uma ideia genial.
A ideia seguinte, igualmente fabulosa, foi furtar um cartaz de propaganda política do regime para trazer para casa como "recuerdo".

Correu mal.
Foi apanhado, julgado (por "crime contra o Estado") e condenado a uma fantástica pena de 15 anos... de trabalhos forçados (regista-se a clemência de ter sido poupado ao alcatrão e penas).

Genial do princípio ao fim: quer nas ideias brilhantes do condenado, quer no tipo de crime imputado, quer na pena aplicada.
Um mimo.

Jerónimo de Sousa que interceda pelo estudante. Oh... wait! He´s a yankee. No way!
Jesus Christ!...

domingo, 13 de março de 2016

As nomeações de Costa

Têm circulado notícias várias (nunca desmentidas) segundo as quais o governo actual já terá procedido a mais de 1000 nomeações (para gabinetes governamentais e quejandos).
Não me interessa propriamente a magnitude deste número: mil ou mais. Esta voracidade é característica de todos os governos do burgo (e apenas um sub-produto do "Estado Leviathan" que James Buchanan descreveu há muito).
E não é só cá, para sermos justos.

Aliás, este instinto predatório (de que PSD e CDS também sempre padeceram) tem agora uma nova justificação: é difícil aos nomeados fazerem-se rogados (quando isso sequer lhes passa pela cabeça) face às atraentes e novas condições impostas por Avoila para os funcionários do Estado.
O que interessava saber é quantos dos recentes nomeados são filiados (ou simpatizantes conhecidos) do BE e do PCP.
Isso, sim, seria interessante saber: tão-só para que se possa ter uma ideia do "preço" que Costa esteve (e está) disposto a pagar para alimentar clientelas que, agora, não são só as do PS.

Em suma: quanto "custa" manter um governo inédito em dezenas de anos de democracia?
As hordas de nomeados pelos novos governos (sejamos imparciais...) estão longe de constituir um fenómeno original e sobre o qual valha a pena dissertar (nisto, PSD, PS e CDS nunca foram diferentes - são factos).
Mas o que é novo é querer saber-se quanto "custa" (na dimensão "clientelar") o peculiar entendimento PS/BE/PCP. Isso, sim, tem interesse - para que se possam tirar as ilações devidas a respeito do que "custa" o "salutar entendimento das esquerdas".
Não é uma curiosidade sectária. É apenas curiosidade "científica".
E não tenho dúvidas de que, do ponto de vista "ético" (depois de tantos anos a perorarem a este respeito), BE e PCP estarão prontos a fornecer todos os esclarecimentos. Porque não lhes perguntam?

Factos são factos

José Ribeiro e Castro disse ontem, no congresso do CDS, o que é por demais evidente. Mas que, apesar de tudo, custa a entrar em cabeças politiqueiras (supostamente tacticistas...): que PSD e CDS não "ganharam" as eleições, sendo por isso a solução governativa actual perfeitamente "legítima".
Porque o aplaudo:
1) Não é verdade que Ribeiro e Castro assuma o que defende por despeito político (motivado por "afastamentos" de que haja sido alvo). A força simples dos seus argumentos torna aliás indiferente que assim fosse. Por alguma razão, o Congresso não o apupou;
2) Querer insistir no contrário é tão contraproducente como esperar que o actual governo caia com base na prosápia da "ilegitimidade" - por aqui, cairá lá para 2025!...;
3) Não tenho especial simpatia actual pelo CDS. Mas, caso pretenda ser uma qualquer espécie de "solução" política com futuro próximo (essa, sim, tão legítima como os festejos causados por BE e PCP terem acedido ao "arco da governação"), o CDS precisa de retirar do momento actual as vantagens do seu estatuto de pequeno partido, encostado, historicamente, pelo "voto útil". É o voto útil que justamente pode ter morrido (embora não de certeza...) no novo (e imprevisível) cenário político. E não se pode vituperar o voto útil às segundas, quartas e sextas, para o apoiar às terças, quintas e Sábados...;
4) Não houve nenhum "golpe de Estado": a prova é que ninguém está em pânico com o que aconteceu - nem cá, nem na Europa;
5) A estratégia política não se faz de "slogans" simplistas (ou de choradeiras persistentes) - a verdadeira (e eficaz), pelo menos;
6) Não acho as metáforas futebolísticas propriamente atraentes para a política (e Ribeiro e Castro, por comodidade, usou-as). De todo o modo, os arautos das teorias da falta de "legitimidade" deste governo fazem-me lembrar o Sporting (os meus amigos sportinguistas que me perdoem....): "só perdemos porque fomos "gamados" pelo "sistema"...". Pois...;
7) Claro que o actual governo pode cair brevemente, "encostado" por Bruxelas (e pelas fracturas que exigências europeias podem trazer à precária união PS/BE/PCP). Mas esse é um cenário contingente, falível e imprevisível. E que não terá nada a ver com faltas de "legitimidade", ou com derrotas (ou vitórias) "de secretaria" do governo de Costa. De resto, quanto mais perdurar a ladaínha da "ilegitimidade", mais fácil se torna que PS/BE/PCP encontrem razões para se manterem juntos;
Com efeito, factos são factos.
O resto é poesia, por mais respeitável que a poesia seja. E é.

quinta-feira, 10 de março de 2016

BENFICA: a diferença

Não são as vitórias.
Também perdemos, como os outros.

A diferença é que ganhamos (e perdemos) todos.
E que diferença quando (já perto das cinco da manhã em Macau) ouvi Rui Vitória dizer, muito sereno:
"Uma vitória justa da NOSSA parte...";
"ESTAMOS todos de parabéns";
"A equipa está acima de qualquer um de NÓS".

De facto, a diferença entre a fixação no "EU" e a humildade do "NÓS" já fazia muita falta.
Porque é o Benfica.


terça-feira, 8 de março de 2016

A liberdade para MORRER

Guardei durante vários dias comigo um texto fabuloso de Cristina Líbano Monteiro intitulado "Morrer".
O sobretítulo é "Eutanásia", como se vê neste link:
http://observador.pt/opiniao/morrer/

Tenho o gosto de conhecer a autora: primeiro, fui seu aluno; depois, seu colega. Espero que me perdoe a ousadia de agora me dirigir a este seu texto, que tanto me fez pensar.
Respigo do seu artigo - que é um grito de que, no intento último, discordo (mas de que gosto e que muito respeito) - o que, para mim, mais releva nele.
Aqui vai.

"Gostava de morrer como vivi. Com a mesma liberdade, com a mesma teimosia, com a mesma gratidão a quem cuidou de mim".
Percebo.
E percebo porque é o ser-se livre que aqui avulta.
Mas, sobretudo, aceito - porque, como mostra o texto de Cristina Líbano Monteiro, também a autora compreende o "ser-livre" como um "ser-com-o-outro", o que bem se observa aqui:
Gostava de morrer quando morrer. Receio dar ordens à morte. (…) E se cortando assim a relação com os outros, com toda a gente, ainda me faltasse dizer alguma coisa a alguém: um pedido, umas palavras de amor, de perdão…? E se rompendo assim a relação comigo própria, não chegasse a encontrar o sentido de tudo isto, da minha vida e da minha morte”?

Sem falar propriamente de eutanásia – fala em muito mais do que isso –, Cristina Líbano Monteiro dirige-se ao tema com a inteligência de sempre: privilegiando a ideia de liberdade como justificação para a sua negação ao direito à morte (e não apenas à “eutanásia”).
É o cerne da questão: no debate que aí está, é a liberdade (a liberdade de morrer, ou a liberdade de escolher a morte ou o momento dela) o tema central - e, no fundo, o fulcro dos argumentos de quem se bate pelo direito a morrer.
Cristina Líbano Monteiro sabe-o bem e foi por isso que escolheu vir por aqui. É esta a razão porque escolhe dizer – como se isso matasse a questão – que quer ser livre... para não morrer.

Como acima disse, o texto de Cristina Líbano Monteiro foi, desde logo, tão importante para mim por uma razão: porque ser livre (no caso, ser livre de recusar a morte) surge aqui como uma emanação dessa ideia fundamental de que, na verdade, só somos acabadamente “nós” na relação “com os outros” – sem eles, sem os que nos amam (ou não), sem a presença que temos neles, não existimos.
É, no modo como vejo as coisas, a verdade.
E é por isso que há um par de anos escrevi (para ler alto numa ocasião que não esqueço) que o suicídio, ao invés do que muitas vezes se ouve, não é a expressão máxima de liberdade. Porque é a opção – o exercício puro e último da vontade - de cortar irreversivelmente com os outros. 
Ora, se ser livre é, para mim, também “ser-com-o-outro” (e não só o mero exercício individual de uma vontade qualquer, porque não somos “nós” sem os “outros”) não pode o suicídio ser a expressão “máxima” do “ser-livre”. É ainda expressão de liberdade mas, amputando os “outros” de “nós”, não é o pináculo do ser-se livre. É, antes, um último reduto de liberdade – de uma liberdade já amputada (porque excindida dos outros), mas que não deixa de ser… livre.

Nas mágicas palavras de Anselmo Borges, morrer é “nunca mais ser”. Também (digo eu) porque deixamos irreversivelmente os outros.
Por isso penso compreender tão bem o grito a que o texto de Cristina Líbano Monteiro dá voz.
Sucede que se queremos falar do direito a morrer – do “direito a escolhermos a morte” (o que é bem mais do que o direito a exigirmos que nos auxiliem no acto do nosso suicídio quando já não somos aptos a praticá-lo sozinhos) – não pode ser a nossa liberdade de querermos permanecer vivos que arruma a questão da possibilidade do exercício da liberdade de escolhermos a morte.
Tornava tudo mais simples, mais certo. Mas não é assim.

Diz Cristina Líbano Monteiro: “agarro com as duas mãos, com senhorio, o meu ser em dor. Peço à minha liberdade que me acompanhe até ao fim. Autodetermino-me a morrer quando a morte vier”.
Admiro-a na sua opção – livre – de se auto-determinar a morrer “quando a morte vier”. A eutanásia (a verdadeira eutanásia – que é a pedido de quem quer morrer) não colide com isto (sob pena de se converter em mero homicídio).
Mas diz que “pede” á Sua liberdade que a acompanhe até ao fim.
Eu não “peço” nada à minha liberdade: exerço-a, pratico-a. Ela não está fora de mim.

Diz depois Cristina Líbano Monteiro: “não permitirei que ninguém me mate”.
Eu, sem o meu consentimento, também não: não suporto a ideia de que alguém decida roubar-me a vida sem eu querer. Mas quero manter a hipótese de – livremente – poder optar por um dia morrer, de poder mudar de ideias nesta vontade que hoje é a minha: a de viver.
Diz ainda Cristina Líbano Monteiro, noutra passagem belíssima:
Gostava de morrer com a mesma liberdade (ou falta dela) com que nasci. Dizem que então chorei e que foi bom tê-lo feito. Dizem que também sofri, pois talvez tendesse a viver para sempre no ambiente fechado em que até então cresci”.
Já eu não quero morrer com a mesma falta de liberdade com que nasci. Porque foi para isso que nasci – para o milagre de passar a ser livre.
Eu quero poder sonhar que voltarei ao ventre de minha mãe. E quero ser livre de acreditar que lá poderei regressar. É um direito meu.

Por fim, guardarei de Cristina Líbano Monteiro isto que também diz:
Gostava de morrer quando morrer. Não quero programar o dia em que hão-de chorar por mim. E se não chorarem? E se chorarem pelo abandono a que os votei, não por mim? E as lágrimas forem de quem se dispunha a cuidar-me, tornando-se mais pessoa, mais capaz de sentir o que a une aos outros?
Digo eu:
As lágrimas de quem se dispunha a cuidar-me serão também as minhas – as mesmas com que morrerei nos olhos.
E o choro dos que chorarem pelo “abandono a que os voto” será fugaz; não lhes imporei, assim, um sacrifício insuportável. Porque me amam, compreendê-lo-ão (amando-me porque amam o que sou “eu” e as minhas escolhas a cada momento; tal como os amo por serem” eles”): é isso que significa amarem-me.

A minha teimosia é (também) querer dar ordens à morte - mesmo que não possa. Porque compreendo a morte como a celebração da vida (que amo): não há morte sem vida, mas não haveria vida sem morte.
Sim, sou livre.

Obrigado pelo Seu texto, Cristina Líbano Monteiro.



sábado, 5 de março de 2016

"É um milagre estarmos vivos"

Dos muitos ensinamentos maternos, este é daqueles de que me tento lembrar todos os dias. 
Não me disse muitas vezes, mas disse-me isto nos momentos certos.
Fê-lo com um ar grave, mas sempre enternecido - de modo a que me lembrasse sempre. E lembro.

Obrigado, mãe.

Uma quadratura que vale a pena

https://www.youtube.com/watch?v=BFlI2yhAJBM

terça-feira, 1 de março de 2016

Di Meola

AL DI MEOLA é um fantástico guitarrista. Em muito mais do que um género (como se prova pela soberba interpretação de Piazzola que deixo abaixo).
Há um par de semanas, por causa das actuações que ocorreram no intervalo do SuperBowl, Di Meola fez um post no Facebook condenando a atitude racista de Beyoncé.
Passei algum tempo, confesso, a ler as centenas de comentários que o post suscitou - uns de apoio, outros (a maioria) de repúdio.
De todo o modo, duas certezas tenho: quem toca assim (muitas vezes, com pessoas de outras raças e credos) não pode certamente ser racista; na América, o problema do racismo é uma ferida bem aberta - e longe de sarar.