domingo, 25 de janeiro de 2015

O recente revés dos normopatas: o "quantitative easing".



Nos últimos anos, a normalidade exasperada e militante - patológica - é a maior enfermidade que grassa.
 
Falo daquela doença que acaba, quase sempre, da mesma maneira: com crianças estupradas e mortas na cave da própria casa, depois de 30 anos de escrupuloso cumprimento, à secretária, da mais ínfima "norma", sempre com as golas da camisa impecavelmente engomadas - "um brinco".
 
O "quantitative easing" é insuportável para esta gente.
 Desde logo, por ser um "easing" - um alívio.
 
A malta deve suportar as dores sem paliativos, atascada no trânsito de todos os dias: viemos ao mundo "para sofrer".
 
Estes normopatas acham magnífico que o homem que trabalhou 30 anos na City de Londres e que todos os dias, por meio de um expediente engenhoso, poupava, ilicitamente (!), algumas libras no bilhete do comboio que o conduzia, diariamente, ao trabalho seja implacavelmente punido. Afinal de contas, "mentiu". E ganhava perto de dois milhões de dólares por ano, por causa de uma carreira sem mácula, feita (também) com mangas de alpaca. Resultado, com aplausos de pé: despedido do emprego a que, afanosamente, se dedicava há décadas (sem queixas de nenhum cliente). E, claro, obrigado a indemnizar o Estado pela diferença em falta nos preços dos bilhetes de comboio. Com juros, evidentemente.
 
Isto passou-se em Londres. Mas a novidade é o aplauso eufórico da casta dos normopatas portugueses.
Dá direito a notícia no Expresso (em Dezembro) e a encómios nas caixas de comentários online. É uma espécie de repúdio pelo ser-latino e pela capacidade de improviso, o ataque à intuição, e a celebração de uma "normalidade" moral sem o mínimo desvio. É, enfim, a desproporção na sanção em todo o seu esplendor.
Melhor do que isto, só o culto da "eficiência" germânica - mas isso fica para depois, porque já não vende tão bem.
 
Para esta gente, o "quantitative easing" é, sobretudo, um pecado. É a renúncia aos sacrifícios que vinham purificando a "Europa". De certo modo, é a vitória daquele londrino do comboio.
 
Como os normopatas gostam sempre de dizer (puxando de um cigarro electrónico de que, ainda assim, se penitenciam, por terem feito jogging pela manhã), "eu explico".
 
Em primeiro lugar, a "Europa" não existe. Nunca existiu. Foi uma abstracção vossa, tal como historicamente se comprova. E, por um lado, ainda bem: não é esta "Europa" que se quer - frouxa e indecisa, uma graçola política, feita de líderes de trazer por casa.
 
Mas há coisas boas: Schengen, por exemplo. E sobretudo, uma coisa já velha, chamada "modelo social Europeu" - que não veio da tal "Europa", mas que antes estava já subjacente aos que insistiram em sonhá-la.
Sim. Essa coisa de ter serviços públicos de saúde com alguma qualidade, para quase todos, a preços muito baixos para os que a usam. E ter escolas públicas em que se investiu durante décadas (geralmente mal, é um facto, mas com sincero denodo) para formar gerações mais sapientes e preparadas (no fundo, mais livres). E, sim, essa coisa de ter um sistema de segurança social para todos, ainda que pobrezinho.
Não vejo outra coisa que nos possa distinguir do modelo americano.
Se a isto juntarmos a velha ideia (que me é tão cara) de liberdade, estamos também afastados dos chineses, o que convém.
 
O modelo social europeu é o ADN da Europa. O único traço identitário que - a ter existido algum - ainda não soçobrou.
O problema é que não temos dinheiro para pagá-lo.
E é aqui que os normopatas enchem o peito de ar.
 
Os normopatas preferem, de facto, o equilíbrio "efectivo" do orçamento (o tal dos 3 por cento do PIB): todo o tostãozinho de dívida, seja para o que fôr que ela tenha sido contraída (não interessa sequer se foi para investimento, porque investir é só para os "privados" - os tais do BES, do BPN, da PT e afins), tem que ser pago com impostos (era o que dizia Adam Smith, que a maior parte desta malta nunca leu, porque a Riqueza das Nações, para eles, só começou em Tatcher e em Reagan).
O que sobrar de despesa - a tal saúde, educação, segurança social, etc. - tem que se "cortar". Isto, claro, acreditando que "reformas estruturais" vão resolver o problema daqui a cem anos: o mercado de trabalho (onde pululam os "recursos" e os "colaboradores") tem que ser "liberalizado", "flexibilizado" e "agilizado": um mundo de sonho - em que se saltita de nenúfar em nenúfar - até à "normalização" total.
Frequentemente, chamam-lhe "processo de ajustamento". O problema é que nunca acaba. Tal como a dívida. E a resignação.
O Estado, esse, fica apenas para "guarda nocturno" - como nos tempo de Adam Smith (e, já agora, David Ricardo). Como se, por exemplo, Musgrave nunca tivesse existido.
 
É aqui que o velho problema da liberdade (que também a eles, normopatas, lhes é pretensamente cara, embora só a pratiquem no banho da manhã) se adensa: como não há um mínimo de igualdade, porque fica sempre tudo (como que paretinianamente) na mesma, não há hipótese de haver verdadeira liberdade.
Com efeito, sem educação e saúde que possa chegar a todos, o caso fica mal parado: até a sacrossanta segurança se vê metida em apuros.
E depois chega a deflação, com a qual o pessoal não consome, nem investe, o que é aborrecido - uma verdadeira "maçada", não fosse a estagnação deflacionista a manutenção conservadora "do que está" e, portanto, qualquer coisa que só agrada aos que se safam sempre a traficar em kwanzas salpicados de piche.
 
Mas há mais.
Supostamente, é também sempre preciso aumentar a "competitividade", diminuir os "custos de produção" e aumentar a "mobilidade".
São chavões deliciosos.
E, outra vez pretensamente, com carácter "estrutural" - não são "paliativos"!
 
É com isto que chega ao fim o tal banho das manhãs. Com as calças pelos tornozelos, já se vê. E com a confiança cega de que o caminho que a tal "Europa" tem percorrido, nos últimos anos, um dia, iria chegar a algum lado.
 
Falta um detalhe.
Esta malta quer a "Europa" com uma moeda fortíssima (como até agora). A valer dólar e meio, se possível. E eu percebo: de três em três anos, os normopatas "tiram" uma quinzena na praia. E querem que o destino escolhido (sempre noutro continente, e para onde, normalmente, levam dólares em carteirinhas atadas na parte de dentro das cuecas para não serem roubados) continue a sair-lhes baratucho. Porque é preciso poupar, claro.
 
Não se trata de esquerda, nem de direita. Trata-se do que está "certo", dizem eles.
 
O problema é que não tem uma moeda forte quem quer. Tem uma moeda forte quem pode (é que aí, sim, a produtividade releva - e muito).
Esta é daquelas evidências que se aprende nos bancos das universidades públicas (as tais que custam dinheiro aos contribuintes);
 
O problema é que o défice do orçamento não tem que ser medido pelo défice "efectivo". Há despesa pública em investimento (a velha despesa de "capital") que, saudavelmente (sim, saudavelmente), pode ser paga com empréstimos (e, pasme-se, nunca se conseguiu - nem em Oxford nem em Harvard - provar que o investimento público é menos útil e "reprodutivo" do que o privado, mesmo que por essas bandas não conhecessem a magnífica história recente das grandes empresas privadas portuguesas....);
 
O problema é que o "regresso à macroeconomia" foi feito com Keynes e não com os amigos de Fukuyama: a história vai continuar - e imparavelmente.
Sem Keynes - note-se - que é para outros futebóis;
 
O problema é que -  se outros argumentos não houvesse - o que a "Europa" fez na última década valeu nada: por isso cresce zero e vive mal. Mesmo "cortando", "apertando o cinto" e visando o (tal) "estrutural". Que nunca chegou. Nem ia chegar.
 
Foi isto (e o último argumento já basta) que levou a esta viragem que os normopatas tanto lamentam.
 
Ninguém de bom senso acha que o QE vai ser a panaceia de todos os males. As panaceias para todos os males são para a malta que pratica a liberdade, moderadamente, só pela manhã. As panaceias são a conversa do "estrutural", do "poupadinho" - da cáfila da "mobilidade" e da "contenção de custos", mas que não se importa de negociar em kwanzas, malgrado a sua superioridade "moral".
 
O QE é uma esperança como qualquer outra. Sim, esperança, essa palavra proibida. Esperança de que uma certa Europa pode, afinal, existir. Mesmo que gaste. Mesmo que se endivide. Mesmo que falhe, a tentar sair do desastre em que se enfiou.
 
O QE é uma guinada em direcção à esquerda moderada (sim, a verdadeira "social democracia" dos livros de ciência política), depois de anos de imobilismo serôdio neoliberal. É o regresso possível à política (diz-se "economia política", lembram-se?), essa coisa que os normopatas tanto temem. Que vai precisar dos bancos, o que faz temer o pior. E que não se basta a ele - QE - sozinho, porque ao contrário do que pensa uma outra esquerda, não pode ser feito com um abrir de pernas aos gastos em tudo o que mexe (vide o deboche português de 2008-2011): é que, nisso, até os alemães têm razão. Tal como Obama - muito mais do que eles - também tem (e Stiglitz, para quem tiver a bondade de o ler).

Em suma:
 
Pode ser que seja um regresso à retórica. E à política: a uma certa ideia de Europa.
E que não vai depender - para ser uma esperança - do quanto se vai gastar, mas de como se vai gastar.
Alea jacta est.