quarta-feira, 23 de setembro de 2015

sábado, 19 de setembro de 2015

A casta (e o "calem-me esse filho da...")

No post abaixo, está retratado um episódio belíssimo da campanha para as presidenciais de 1986.

Soares - goste-se ou não dele - foi uma personagem incontornável da história política do país. Mas também o exemplo vivo de uma certa forma de fazer política - que só pode ser compreendida à luz do seu tempo.

Há muitas coisas que, no futuro, serão discutidas sobre Soares. Da importância da Fonte Luminosa ao descalabro da sua última aventura presidencial, em que Alegre o aniquilou.

Soares é, de resto, um exemplo flagrante dos malefícios da recusa em sair de cena no tempo certo. 


Tivesse Soares sabido resistir à tentação de se candidatar a deputado europeu (atrás da hipótese - que sabia perdida - de se tornar presidente do Parlamento Europeu) e, depois, a um terceiro mandato como Presidente da República, e a história que se escreverá sobre ele seria diferente.

Soares, na hipótese de ter saído a tempo da cena política activa, seria hoje um senador quase unânime que não é. E com uma influência praticamente imbatível, que delapidou.

Mas o que o episódio relatado abaixo por Henrique Monteiro retrata (o célebre "Calem-me esse filho da puta") vai muito para além de Soares. Como a cena em que o mesmo Soares, já presidente, diz a um guarda republicano que vá para casa.



É que Soares, nesta parte, representa uma certa casta.
Uma casta muito particular que sempre se reclamou de "esquerda" e que ainda hoje existe em Portugal.
Uma casta pedante, supostamente intelectual, convencida de que detém um direito natural a mandar nos outros (que são sempre uns "parolos", sem direito a abrir a boca).

Esta casta é normalmente senhora de uma ignorância insuportável (não é o caso particular de Soares) mas, sobretudo, de uma ilimitada soberba sobre os outros, a qual assenta, quase sempre, numa preguiça irresponsável feita de uma inutilidade total para trabalhar sequer um segundo.

Esta casta sempre existiu em Portugal.
São supostamente tolerantes para com os outros (na verdade, suportam-nos), e dizem-se munidos dos valores da "esquerda". Da sua esquerda, claro - a que lhes interessa: sem o fedor dos trabalhadores.

Não é Soares que me importa. São os que, ainda hoje, vivem exactamente do modo que ele representou. E que - para sermos justos - são muitíssimo piores do que ele.


"Calem-me esse filho da ..."


"Alguém imagina como foi a primeira volta da candidatura de Soares a Presidente em 1986? Penso que quase ninguém! O histórico socialista tinha deixado o Governo, depois de uma intervenção do FMI e o país estava cheio de chagas sociais. O Bispo de Setúbal, Dom Manuel Martins, conhecido pelo ‘Bispo vermelho’ referia os casos de fome no seu distrito, ou Diocese. A CGTP clamava contra os salários em atraso, que era o pão de cada dia. O PCP tinha prometido jamais votar em Soares, por ele ser um reacionário consumado (na verdade, entre a primeira e a segunda volta, fez um congresso extraordinário e apelou ao voto nele contra o candidato da direita, Freitas do Amaral, apoiado por Cavaco Silva – o mal de se ser velho é que se já viu muita coisa).
Soares partira para as presidenciais depois da mais monumental derrota do PS, que tivera pouco mais de 20 por cento, contra 29% do PSD e 18% do PRD um partido formado por apoiantes do Presidente da República cessante, Ramalho Eanes (parece-vos outro país? Mas é o mesmo e os nomes ainda andam por aí). As sondagens para as presidenciais davam-lhe oito por cento, atrás dos dois outros competidores de esquerda, infelizmente já ambos falecidos: Maria de Lurdes Pintasilgo, apoiada por independentes e pela extrema-esquerda (o que será hoje o Bloco; o seu chefe de campanha é o número um das listas de Marinho e Pinto por Lisboa, o capitão de Abril Rodrigo Sousa e Castro); e Francisco Salgado Zenha, fundador do PS e ex-número dois de Soares, apoiado pelo PRD de Eanes, pelo PCP e disfarçadamente por muitos socialistas (Soares tinha o apoio de membros do PSD descontentes com a escolha de Freitas por ser muito à direita – juro! – como Helena Roseta, Rui Oliveira e Costa, Fraústo da Silva, Alfredo de Sousa, ou Rogério Martins).
Bom, este era o quadro.
Soares, em plena campanha, passa pelo Tramagal, sede da Metalúrgica Duarte Ferreira onde havia, desde 1984, constantemente salários em atraso (a empresa, que remontava a 1923 e mantinha o nome desde 1947, seria extinta em 1995). À sua espera, diante de uma camioneta de caixa aberta que serviria de palco, estariam 20 ou 30 pessoas. Não mais. O resto da terra era basicamente afeta ao PCP.
Soares saiu da sua viatura um pouco antes do palco improvisado e, atrás dele, a uns metros de distância, um homem grita-lhe: “Malandro! Traidor! Paga o que deves! Salários em atraso! Miséria!”.
O candidato não lhe liga e segue o seu caminho, mas o homem não desiste e continua com os impropérios, talvez misturando uns palavrões.
Soares sobe à camioneta e dirige-se ao microfone. O homem coloca-se por detrás do veículo e continua a ladainha: “Salários em atraso - malandro! Paga o que deves!”.
Nisto, Soares olha para o lado e pede a um assessor, no seu melhor vernáculo: “Calem-me esse filho da puta!”.
Mas o microfone estava aberto e estas foram as suas primeiras palavras no Tramagal.
O que para outros seria uma tragédia, para Soares não passou de um pequeno episódio. Ao fim do comício, estava animado e pronto para partir para outra".
Henrique Monteiro - Expresso

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Morto

Sempre tive o poder de matar em mim. Não sei se é bom, ou se é mau. Francamente, pouco me importa. É um dado de facto.
Refiro-me à pura e simples liquidação de alguém: inexorável, inelutável.

Não consigo fazer isto sempre: só mato em mim quem significou alguma coisa. Mas este aparente paradoxo nasce de uma lógica inquebrantável: quem nunca significou nada, não é susceptível de ser morto em mim porque, já de si, significou sempre nada - em mim.

A faculdade de eliminar o outro é o correlato da importância que o "viver-com-o-outro" tem. Não somos mais do que esse "viver-com-o-outro". Tudo porque o "outro" é um predicado necessário de "nós".

Eis, pois, logo por aqui, porque é especialmente fácil matar - em nós - os que nunca se lembram do outro e vivem somente centrados em si, geralmente embevecidos.

Com isto sempre incompreendi os que necessitam de eliminar fisicamente alguém. Porque não matá-los simplesmente em nós?
É o que faço, sem dificuldade de maior.

Torna-se-me mais fácil decretar estes óbitos quando o morto era supostamente erudito mas nunca foi capaz de escrever uma linha.
Em regra, nunca ter escrito uma linha é a consequência da desvalorização dos outros: como só o "eu" (deles) interessa, vivem na presunção de que só eles compreendem, de que só eles sabem; e que os outros não merecem - ou não podem - saber. O esforço de se fazer compreender - o esforço de comunicar - deixa, assim, de fazer sentido. E, por isso, nunca escrevem ou escreveram. Fechados numa imbecilidade só igualada pela enormidade do respectivo ego.

Mas a verdade dura é que nunca escrevem (nem escreveram) por pura e simples incapacidade. Pelo absoluto falhanço em se fazerem compreender. Pelo eterno convencimento de que, quando escreverem, produzirão a essência das essências. O que jamais sucederá, por motivos óbvios. 
Porque se pudessem - e soubessem - escreveriam. Para alcançar a imortalidade que o seu amor próprio (só por si, claro) reclama. Tudo porque, no fundo, sabem que a morte física só é vencida pela presença nos outros, que ocorre também quando alguma linha, depois dessa morte, é lida.

Quando não há nada para ler, és fácil de matar.
E assim é. Numa penada.



sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O debate



Vamos ao que interessa. E sem rodeios: Costa ganhou o debate - que mais de 3 milhões de pessoas viram.

Interessa esclarecer que esta é uma opinião sobre o debate e não sobre o que considero que fosse melhor que ocorresse nas próximas eleições, das quais, sinceramente, não acho que vá resultar nenhum desfecho que interesse (como esclarecerei a seguir). Mas, neste momento, é para o lado que durmo melhor.

1) O primeiro ponto que considero relevante é este: como há vários anos defendo, estes debates, ao contrário do que nos tentam vender, são importantes. E, às vezes, decisivos.
Foi, por exemplo, assim - como na altura defendi - que Passos ganhou as eleições de 2011 a Sócrates, a despeito de muita gente ter dito que não houve vencedor claro no debate de então. É falso: Passos ganhou claramente esse debate a Sócrates (e lembro-me, com nitidez, que Miguel Sousa Tavares - goste-se ou não dele - foi dos poucos que teve a coragem de o dizer, nessa altura, sem rodeios. Hoje, toda a gente o diz).

A teoria de que os debates não interessam - sobretudo debates como este, vistos por tanta gente - é patética.
O formato destes debates está longe de ser o ideal e é evidente que não servem para apresentar "propostas": isso é impossível de fazer nos dois minutos que cada candidato tem para falar a respeito de cada ponto. Mas o poder de influência nos eleitores é infinitamente superior ao de comícios ou encontros que terminam à volta de sandes de mortadela e onde só vão os que já decidiram o seu voto. E isto é tão evidente que não carece de mais explicações.

Dir-se-á: mas os indecisos não decidem a orientação do seu voto em função dos debates. Talvez. Mas a certeza é que decidirão essa orientação muito mais facilmente em função de um debate que viram do que em resultado da cobertura mediática minimal dada aos eventos "clássicos" de campanha (cartazes, comícios e parafernália do género).

2) Nem Passos nem Costa são grandes tribunos ou têm o dom da palavra. Mas o estilo de Costa - que é muito mais eficiente do que Passos em asserções curtas balizadas por tempos de dois minutos ou menos - constituiu para ele uma vantagem que soube aproveitar.
O formato do debate confirma, aliás, uma coisa que já fui dizendo: como é impossível, em dois minutos, defender o que quer que seja para o "futuro" da acção governativa, é preciso assumir que estes debates servem, sobretudo, para abrir feridas no contendor. A eficácia destas feridas depende, de resto, da elevação e do estilo com que são abertas.
Facto é que ninguém assiste a estes debates esperando ficar com uma ideia mais clara do que se seguirá no futuro - as pessoas vêm os debates (e valorizam-nos) em razão das estocadas que querem ver desferidas num dos candidatos.
É triste, mas é assim.
E, malgrado não haja "vencedores" num debate sério, a verdade é também que as pessoas esperam (e desejam) que deles resulte um "vencedor". Isto é exactamente assim. São as regras do jogo e não vale a pena ignorá-las.

3) O formato deste debate teve, aliás, propriedades interessantes.
Os três jornalistas presentes, munidos de perguntas rupestres, interromperam constantemente os dois debatentes, esquecendo, muitas vezes, que ninguém os queria ouvir a eles, jornalistas. Paciência - também faz parte das regras do jogo.
Mas o mais substancial é que insistiram na tecla de que "é o futuro que interessa" e que era sobre o futuro que queriam obter respostas.
Convém reparar que isto ilustra o estado do jornalismo: os senhores jornalistas consideram curial que, em menos de dois minutos, os candidatos dêem respostas sérias sobre medidas que pensam levar a cabo em áreas tão complexas como o mercado do emprego, a subsistência do sistema de segurança social, etc. Pura ilusão, como é óbvio.
Resultado: o debate, em vez de servir para os debatentes dizerem o que querem e o que as pessoas querem ouvir - e as pessoas querem também ouvir falar do "passado" porque só sobre o "passado" é possível discutir com mais dados -, serviu para um exercício de jornalismo grotesco. Mas são as actuais regras do jogo, que não servem de desculpa a Passos ou a Costa. 

4) Passos decidiu seguir sem hesitar as instruções dos "experts" de Marketing político brasileiros. Consequência: as hesitações foram mais do que muitas. E não somos o eleitorado brasileiro, para o melhor e para o pior.
Curioso é, aliás, que Passos se apercebeu disto mesmo durante o debate: nota-se claramente a sua perda de fé no guião que levava, à medida que o tempo passava. Mas já era demasiado tarde. E Costa, claro, aproveitou - e com mestria.

5) Os feiticeiros do Marketing aconselharam Passos a colar Costa, com toda a força e sem subtilezas, a Sócrates.
Esqueceram-se que o eleitorado não é idiota. E que é mais susceptível de ser influenciado por mensagens subliminares do que por referências expressas, constantes e, muitas vezes, despropositadas.
Toda a gente sabia que Passos não estava a debater com Sócrates. Toda a gente. E. por isso, a única hipótese de colar Costa a Sócrates era dizer-lhe, uma ou duas vezes (era o bastante), e com acutilância, que tinha sido o "número dois" nos Governos de Sócrates (e que, como tal, não podia furtar-se a responsabilidades directas pelo que sucedeu antes de 2011). Mas isto não souberam dizer a Passos para fazer. E ele, que tem obrigação de fazer o que acha bem, não fez.

6) Chegou, portanto, a ser ridículo ver Passos, tantas vezes, a fazer de conta que estava a debater com Sócrates. Foi penoso.
E Costa, nesse aspecto muito bem, aproveitou a oportunidade soberana para se demarcar - e com um soundbyte: "Vá visitá-lo e discuta com ele".

7) Dizem que estes debates nunca devem ser "ganhos" por K.O., porque isso desperta um sentimento de misericórdia nos espectadores, que pode ser contra-producente para o vencedor. 
Duvido que isto seja assim. Mas o que Costa fez foi ganhar aos pontos, com vantagem clara. Mais: acho que ganhou por K.O. técnico, o que é vantajoso para ele segundo qualquer teoria.

8) Mas o que faltou a Passos, impossibilitando-lhe qualquer hipótese de ter feito um debate aceitável?
Quase tudo, porque os brasileiros não percebem nada de política portuguesa: de marketing eleitoral, sim; de debates em Portugal, não.

Era, pois, a Passos que cabia ter identificado o óbvio - que a maneira de encostar Costa às cordas era (sobretudo naquele formato televisivo):

(i) por exemplo, fazer lembrar com afinco o entusiasmo demonstrado por Costa, no passado (esse sim recente), com a vitória e linha política seguida pelo Syriza (a única referência que Passos fez a isto foi completamente inoperante, porque não quis trazer uma ideia de Europa ao debate), porque isso é sintoma de uma certa predisposição para o aventureirismo (que era o que Passos queria colar a Costa);
(ii) por exemplo, vincar bem a ideia de que o programa do PS de Costa só é possível porque o país, não estando nada bem, está indubitavelmente melhor do que há quatro anos atrás, tal como Costa asseverou aos chineses que estavam na Póvoa do Varzim;
(iii) por exemplo, contra-atacar eficazmente - e sem rodeios -, a respeito da ideia de depauperamento social, vincando a ideia simples (que lhe dava espaço para demonstrar o entusiasmo que nunca demonstrou durante todo o debate) de que queria agora a oportunidade, depois dos sacrifícios que teve que impor ao país, para governar com melhores condições económicas, a fim de resolver também problemas "sociais";
(iv) por exemplo, vincar bem a ideia de que a Troika teve que vir por causa da actuação de um governo que Costa integrou e pelo qual foi um dos máximos responsáveis; e perguntar-lhe, de forma incisiva, e repetidamente, "sente-se ou não responsável por isso"?
(v) por exemplo, retorquir a Costa dizendo-lhe que também ele - Costa - não estava a debater com António José Seguro;
(vi) por exemplo, explicar que ele - Passos - já tinha provas dadas durante 4 anos (boas ou más) e que isso é muito mais de confiar do que um programa assente em projecções macro-económicas que nunca acertam, tal como sucede com o PS (e isto servia também para arrumar com a acusação de Costa de que "a coligação não tem um programa");
Etc.; etc.

9) Passos não fez nada disto. E, preso aos conselhos dos brasileiros, remeteu-se a uma defensiva de que só podia resultar um hara-kiri. E contentou-se com golpes inofensivos: Sócrates e mais Sócrates, o dinheiro que o Governo tinha dado à Câmara de Lisboa liderada por Costa (esta correu mesmo mal...) e pouco mais.
Palavroso, e nunca conseguindo despir o casaco de primeiro-ministro (e não era nessa qualidade que ali estava), Passos foi rotundamente ineficaz (o que é mortal naquele formato televisivo). Com efeito, alguém se lembra de um ponto - daqueles que fique - trazido por Passos no debate? Eu não.

10) Costa, bem ao contrário, não se preocupou quase nada em falar de coisas concretas quanto ao futuro, porque sabe que tal pouco importa. Não prometeu e conseguiu até gabar-se de que não prometia, o que lhe permitiu marcar pontos.
E, de forma eficaz, ocupou-se, sem tergiversações, de deixar bem marcadas as mensagens que lhe interessavam:
(i) que tinha gerido superiormente, do ponto de vista financeiro, a Câmara de Lisboa;
(ii) que Sócrates não estava ali em debate - quem estava a debater era Costa;
(iii) que havia programas implementados pelo Governo que eram uma autêntica piada - o exemplo do programa "Vem" foi expressivo;
(iv) que a austeridade tinha que ser agora substituída por politicas de crescimento (embora sem explicar quais, mas o tempo não dava para isso, o que foi para ele um alibi perfeito);
(v) que o Governo quis ir "além da Troika", como a certa altura alardeou, sendo por isso responsável por uma acrescida austeridade.

Marcar cinco ideias era o bastante para ganhar a quem não tinha conseguido marcar nenhuma que importasse. E assim foi.

11) Resultado: como os debates interessam, Costa ressuscitou. E pode agora ganhar as eleições.
Mas há uma coisa que é certa: não haverá maiorias absolutas para ninguém, porque os tiros no pé que o PS vinha dando em abundância estão agora estancados. Porque Costa ganhou o debate, sem dúvida.
Pena é que o país continue tanto a precisar de um governo maioritário, qualquer que ele fosse. E esse, não vai existir.