quarta-feira, 25 de março de 2015

As Beiras

Quando Clara e António Alçada foram avisar Herberto do Prémio Pessoa

Em dezembro de 1994, Herberto Helder foi o escolhido pelo júri do Prémio Pessoa. Mas ninguém tinha o telefone do poeta nem sabia bem onde o encontrar. Dois membros do júri, António Alçada Baptista e Clara Ferreira Alves, partiram de Seteais, onde a reunião do júri do Pessoa decorre todos os anos. Foram à procura do escritor, com uma única pista: o nome da rua. O relato desse encontro foi publicado pouco dias depois no Expresso, em dois textos separados. O Expresso republica os textos de António Alçada e de Clara Ferreira Alves, que recordam o encontro extraordinário com um dos maiores poetas da língua portuguesa, que morreu segunda-feira.
           
Quando Clara e António Alçada foram avisar Herberto do Prémio Pessoa
 
"NÃO DIGAM A NINGUÉM"TEXTO DE ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA  
Foi assim: ninguém tinha o telefone do Herberto Helder, eu só sabia o nome da rua porque tenho muita dificuldade em decorar números. Foi então que a Clara propôs irmos à procura do poeta na rua que eu tinha. Só havia dois prédios de habitação. Um deles, era quase uma torre e tinha um painel de campainhas. A Clara tocou uma delas, ao acaso. Daquela gradinha de rede veio uma voz. "Quem é?". A Clara perguntou se era da casa do poeta Herberto Helder. "Mas quem é?". Ela disse o seu nome. Então a porta abriu-se e nós subimos. A Olga estava à entrada da casa. Eu gosto muito da Olga, primeiro por ela e depois porque nos toma conta do Herberto. Digamos que ele faz parte do nosso Património e ela é a Conservadora. Eu disse-lhe baixinho: "Olga, o Herberto ganhou o Prémio Pessoa, são sete mil contos.
"Como é que isto vai ser?"
Ela fez-me uma cara de conformação e só com um gesto de cabeça fiquei a saber que não iria aceitar.
O Herberto estava na sala. Falou à Clara e depois a mim.
Eu disse, meio a brincar meio a sério: "Vimos numa difícil missão..."
Ele, com toda a simplicidade dele, disse-me logo que não, calculando que era um prémio.
Não foi possível demovê-lo e sentimos que aquilo era tão fundo e tão importante que não devíamos insistir. Ele disse:
"Vocês não digam a ninguém e dêem o prémio a outro... "
"Não pode ser, o júri escolheu-te a ti, a decisão está tomada; respeitamos que digas que não... "
Ele ainda acrescentou:
"Peço que vocês sejam meus mandatários e digam ao júri que eu agradeço mas não posso aceitar"
Eu queria transmitir bem que não havia aqui nenhuma arrogância: a sua recusa não era contra ninguém. Era uma decisão do seu mais íntimo, que logo nos mereceu o maior respeito. Eu só lhe disse: "Eu já gostava de ti e vi agora que é possível ainda gostar mais..."
A Clara falou muito com ele porque ambos gostavam de se conhecer. Ela sabe fazer conversas inteligentes como se fossem banais. A certa altura viemos embora com alguma comoção por dentro e desabafámos no carro.
"Já ninguém faz isto... "
"Todos ganhámos este prémio. Quando a regra é a procura de dinheiro, é bonito que um homem pobre dê exemplos assim. "
Eu, confesso que passou pela cabeça de um bocadinho de mim que ele pudesse aceitar o prémio. Sempre eram sete mil contos. Talvez uma segurança até ao fim da vida. A verdade é que quase me apeteceu voltar atrás e pedir-lhe desculpa por este "mau pensamento". Mas eu era um homem feliz: o Herberto não nos deixou ficar mal...
 
 
LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE HERBERTO HELDERTEXTO DE CLARA FERREIRA ALVES  
"O dinheiro fazia-me jeito, estou a precisar de um helicóptero", diz o Herberto. Para as viagens ele utiliza - que seria de nós sem um cómico "cliché"? - as asas do poema. E no passeio em frente à casa, onde o António Alçada e eu medimos os passos em volta do poeta, é proibido aterrar. É não. Por razões pessoais e secretas, a pessoa recusa o Prémio Pessoa.
Há uma regra de senso nestas coisas da literatura. Nunca conhecer de perto quem se admira muito. Nos idos de 60, este senhor publicou Os Passos em Volta, que é uma prosa de diamante, clara e dura, eterna. E havia a poesia, ouro garimpado com esforço, separando as palavras da terra que as enlameia, da pedra que as confunde, da corrente que as arrasta. Quase ninguém tem paciência e braço para tal trabalho de homem, a tempo inteiro, mal remunerado. Como diz o António. "Tem um preço, ser o Herberto Helder".
Sete mil contos não chegam.
A casa é pobre, de quem cuida mais dos versos que de si mesmo. O monte de papéis, os livros à beira do abismo, os desenhos na parede, o costume. Os escritores ora são desabridos ora desarrumados. O que não são é desprendidos. O escritor respira a contemporaneidade e aspira à posteridade, sabendo que para ter a segunda precisa da primeira.
Este senhor desprendeu-se. Os elogios caem-lhe das mãos, a notoriedade explode-lhe na cabeça. Enfim, "não quer dormir sobre o assunto? Este prémio não é um prémio literário, etcétera".
Ele quer falar de tudo menos de prémios. Ou de dinheiro. "Seria vil eu aceitar por causa do dinheiro". Diz as palavras como se estivesse a compô-las, Vil é uma palavra escolhida, serve para a ironia e a seriedade, embora o substantivo seja a especialidade do Herberto.
O António Alçada e eu demos mais uns passinhos em volta... Não? NÃO.
Partíramos de Seteais buscando um homem, como Diógenes, e tínhamo-lo encontrado. O António arrumou as emoções e, composto na frase: "Sabes que te digo? Ainda gosto mais de ti por causa disto."
Batemos para Sintra, por uma estrada sem mistério, ruminando o mistério das palavras e dos que ainda as escrevem.
Foi um prazer conhecer a pessoa do Herberto.


Ler mais: http://expresso.sapo.pt/quando-clara-e-antonio-alcada-foram-avisar-herberto-do-premio-pessoa=f916640#ixzz3VMHhHZwA




quinta-feira, 19 de março de 2015

segunda-feira, 16 de março de 2015

Diário de um normopata (III)

 
Eram 8h32. O despertador só estava programado para o despertar às 9h15, mas agora acordava sempre antes daquele apito insuportável - como nunca sucedera outrora: havia até tempo para, quando a leitura do jornal o não distraía o suficiente, calar antecipadamente o lembrete estridente, remarcando-o para a manhã do dia seguinte.
 
Numa renovada rotina, seguía-se uma banana a servir de pequeno-almoço e um café numa chávena que dizia "LOL", o que funcionava como uma espécie de troféu daquela tão ambicionada normopatia - uma vida nova e desconhecida, mas sempre repetida.
 
Havia, em seguida, a dança da poupança de energia: metodicamente, desligava agora sempre a luz da sala maior (por onde acabava por fazer um curto périplo, também ele rotineiro, a fim de se aperceber do tempo que fazia lá fora, para poder decidir o que vestir) antes de acender o aquecedor da casa de banho. Não havia poupança de energia que se visse, mas a convicção de que a medida assim tomada era racional enchía-o de um certo contentamento - até pelo facto de a ver como uma obrigação, cujo cumprimento era ligeiramente incomodativo.
 
A seguir, o banho da manhã fazia-o pensar, por vezes, no significado destas novas rotinas. E, de vez em quando, deixava escapar um sorriso divertido a propósito delas, que não deixava de ser de escárnio por uma certa alienação que sempre teve pouco que ver consigo e com as suas manhãs.
Corrigia, porém, imediatamente o desvio, pensando rapidamente que não podia pensar no que pensava (ou deixava de pensar) naquelas novas manhãs.
 
Com a certeza, claro, de que, amanhã, haveria mais. Sem surpresas, evidentemente.