domingo, 8 de maio de 2016

"Sobrados de tempo"

Dizem-me - e leio - que havia tempos em que estávamos "sobrados de tempo".
Gosto do encadeamento das palavras; a composição tem a estética da matemática.
Mas cerro os olhos, penso nos eufemismos que detesto ("falecer" em vez de "morrer"...), e resigno-me à minha verdade pessoal: todos os dias andei atrás do tempo. Nunca me senti sobrado dele. Nem hoje, nem ontem - nunca.

É o que é.

O tempo - esse derradeiro mistério (para lá do que é insondável na morte) - convoca-me sempre para uma frase que antes saboreei com alguns bons amigos: "Este é o momento. Este é o tempo".
Depois, à medida que relembro um turbilhão de coisas, persiste em mim o frenesim do tempo. Daquele tempo que Einstein, com a sabedoria de sempre, definia simplesmente como "aquilo que o relógio diz", sem conseguir - nem querer - mais.
Aquele tempo de que andei sempre atrás, às vezes numa correria louca - sempre "cá dentro".

De facto, não dá para mais.
E aterra-me também a possibilidade de que o Direito tente reflectir, nas suas tantas imperfeições, sobre o tempo: "O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas" é provavelmente o capítulo mais grotesco dos temas tratados no Código Civil (porque exacerbadamente petulante mesmo na ambição do saber)... É quase a mesma coisa que ocorre quando os médicos querem dissertar sobre a alma: há coisas ditas com interesse, mas que sabem inescapavelmente a pouco e, no fim, a nada.
Pior só os juristas a fazerem-se de médicos em casa ou em inefáveis "escritórios", naquele exercício delirante que revigora o dizer antigo - e acertado - segundo o qual "de médicos e loucos todos temos um pouco".

Há, depois, a memória - que é provavelmente o único predicado do tempo em que persisto sempre. E de que não preciso de correr atrás, porque é ela quem se encarrega de me perseguir a cada passo.
Escrevi isto, algures no passado dos relógios:
"Sem as querer anular, acho sempre que a fantasia também é (porque se faz de) memória e que a memória é, numa boa parte, fantasia.
Podia ficar a faltar o tempo, mas desse pode apenas apropriar-se a memória.
É pouco - como a carne. Mas já é alguma coisa".

Foi, quase decerto, um momento de rara inspiração em mim.
Mas a que o tempo pode voltar atrás. Tal como acontece perenemente a todos.