domingo, 5 de fevereiro de 2017

Liberdade, suicídio e eutanásia

A discussão recente sobre a EUTANÁSIA (provocada pela petição a respeito dela) relembrou-me palavras minhas de 2012.
Sendo coisas evidentemente diferentes, persisto em pensar (porventura mal...) que a eutanásia não pode ser discutida à parte do suicídio (não assistido), assim como estou seguro de que discussões em torno dos conceitos de "dignidade" são completamente estranhas (e, no fim de contas, inúteis) para a verdadeira discussão em torno da eutanásia (mas a isso - à relevância da "dignidade" para este tema - irei depois e não já).
Por enquanto - e só por isso deixo aqui transcrito o trecho que se segue -, interessa-me apenas evidenciar que o suicídio, e também a eutanásia, aparecem vulgarmente ligados a um conceito erróneo (porque meramente "individualístico") de liberdade.
De resto, e a respeito do tema "eutanásia", quero dizer que não estou hoje seguro de nada, nem convicto de solução nenhuma - o que não é vergonha nenhuma, antes pelo contrário.

“ [...] A liberdade, ainda que pressupondo “sujeito”, não dispensa o “outro”. E tanto é dizer que se a liberdade é condição (e atributo) essencial do “ser-eu”, ela inexiste sem o “ser-com-o-outro”.
É daqui que extraio a minha convicção de que não é acertado ver no suicídio a expressão MÁXIMA da liberdade, como tantas vezes é propalado (e isto é questão independente de saber se o aceito e respeito, ou não). Tudo porque tal impostação das coisas assenta numa visão errónea (mas tradicional e largamente dominante) que liga e limita a "liberdade" ao individual (“fechando-a” – o que, já de si, é uma contradição – no “indivíduo”).
Com efeito, a morte é consequência necessária do suicídio (que haja sido bem sucedido): este implica sempre esse “nunca mais ser” (para citar Anselmo Borges), que abole, em termos radicais e inexoráveis, a relação (do “ser-eu”) com o “outro”. A morte é essa negação – a abolição radical do “ser-com-o-outro”. E (ainda que) “querida” ou “escolhida” (se é de suicídio que se trata) não pode resultar numa expressão (e máxima) de liberdade, pois que a liberdade, na sua plenitude (e ao invés do que comummente se aceita), implica necessariamente uma relação do “eu” com o “outro”, que a morte aniquila irreversivelmente.
Em síntese: a liberdade pressupõe (e tem como “prius”) um “sujeito” (sujeito ao qual possa ser imputado o “ser-livre”), mas que se não pode entender – sobretudo porque é “pessoa” – como um “eu” sem os “outros”. Não concebo a individualidade humana sem o “ser-livre” (por este ser necessário atributo de identidade), o que implica forçosa “relação” (com os “outros”) e, portanto, “mundo”.
Vale isto por dizer que a liberdade pressupõe “sujeito” (que é dela “prius”), sendo simultaneamente dele (desse “sujeito”) condição inarredável.
Creio, todavia, que a liberdade, ainda que pressuponha “sujeito” (e, portanto, precise de “mundo”), não carece de “existência”, ou, pelo menos, de verificação efectiva, para afirmar a sua “essência”. Nesta sede, a “essência” precede a “existência”, ao menos numa determinada acepção (a de Sartre e Finkielkraut). Mais precisamente: se é para mim certo que a liberdade pressupõe, como “prius”, sujeito (ao qual possa ser imputado o “ser-livre”) e, com ele (porque humano), “mundo” (e, logo, “relação”), não é menos certo que ela (ao ser o infinito – e, com isso, se se quiser, a expressão de Deus), num “posterius”, também o transcende (a ele, “sujeito”, e ao – seu – “mundo”). Tudo o que permite ver nela uma “essência” que, sob certa perspectiva, dispensa “existência” (e que, desse jeito, a precede), explicando-se, assim, por seu turno, a circunstância de a liberdade se bastar com a mera “possibilidade de…”, ou com a mera “susceptibilidade de…”, para se consubstanciar.
O “ser-livre” (e sê-lo plenamente) basta-se com uma mera condição “potencial” (com a simples “faculdade de…”), dispensando-se o acto que a concretize. E tanto é assim com a "liberdade de pensamento", como com a "liberdade de expressão", ou com qualquer daquelas que se pretenda enunciar. Esta força vital da liberdade é, simultaneamente, contudo, causa da sua tremenda fragilidade, pois dá azo a que seja imensamente simples (e tentador) atentar contra ela".