sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A ferros

 
 
Chega.
Chega dos dislates de Ferreira Leite. Chega dos seus comentários "económicos". Basta!
 
Tenho o maior dos respeitos por esta estimável senhora, cuja idoneidade e seriedade não me atrevo a questionar: tanto é mais do que o bastante para a respeitar e estimar, sobretudo nos dias que correm.
 
Repito: não duvido da sua honestidade, dos seus princípios e do seu carácter. Genuinamente.
Mas é tudo.
 
Do ponto de vista político, principalmente hoje, reconheço-lhe zero.
 
Desde que abandonou a liderança do PSD, Manuela Ferreira Leite nunca logrou abrir a boca para dizer alguma coisa que aproveitasse ao país.
Pensei, a princípio, que o fenómeno se devesse a uma rezinguice (até certo ponto, compreensível) pelo falhanço rotundo em que redundara a sua tentativa de  glosar uma "dama de ferro" na liderança do PSD. Mas desenganei-me rapidamente: já lá vai tempo demais sem que o disparate tivesse cessado.
 
Ferreira Leite foi provavelmente a mais tacanha ministra da educação de todos os tempos, ainda na época da governação de Cavaco.
A crispação foi tanta (já no estertor do cavaquismo) que a respeitável senhora se constituiu, num passe de mágica em que a política é fértil, numa espécie de reserva moral e "técnica" do PSD.
Até aí, tudo bem. A vida tem destas coisas.
E as catacumbas do Banco de Portugal serviam para a guardar.
 
Manuela voltou a entrar em acção no governo de Durão e Portas.
Nunca ninguém até então, como ela, falara tanto na necessidade de austeridade, contenção do défice, controlo das contas do Estado. Estávamos no pré-socratismo e a maioria dos portugueses nunca tinham ouvido falar com tanto alarme do défice, de programas de estabilidade e crescimento e no pacto com a mesma designação.
Se já ninguém se lembra, eu recordo: foi aí que o número mágico dos 3% do défice efectivo do orçamento saltou para as parangonas dos jornais e para tudo o que era telejornal. A depressão e a "fossa" da austeridade (que, agora, tanto afligem Ferreira Leite) começaram aí. Precisamente aí, quando ela era ministra das finanças.
 
Esclareça-se: os mais brutais disparates feitos nas finanças portuguesas já vinham do passado, mas foi no ministério de Ferreira Leite que começou o assanhamento da retórica depressiva - ninguém se lembra de que foi então que nos disseram, pela primeira vez em muito tempo, que estávamos "de tanga"?
Eu lembro.
Lembro-me bem que Ferreira Leite cavalgou nesta retórica até ao governo de Durão se despenhar em chamas. Isto, claro, depois de um desempenho de Manuela nas Finanças que toda a gente faz por esquecer e que teve como pontos altos a "luz verde" do seu ministério para a aquisição dos famigerados submarinos e, sobretudo, a venda de créditos fiscais ao Citigroup. Isto, claro, para não falarmos no uso e abuso de receitas extraordinárias (a meter traficâncias com arrendamentos de imóveis do Estado) para mascarar os buracos orçamentais.
 
Como vivemos num país sem memória, tudo isto ficou obnubilado pela espuma dos dias. Também, evidentemente, porque a seguir tivemos o inolvidável Governo de Santana, cujas erupções diárias como que faziam a História do país voltar a zeros todos os dias. E porque Manuela, reconheça-se (muito embora, não desinteressadamente), se perfilou, dentro do PSD, como uma das mais ferozes adversárias desta insanidade.
 
Depois, veio Sócrates. E, claro, vieram os respectivos desmandos.
E Manuela, quase sem saber porquê, já líder do PSD (após purgas inesquecíveis), no fim dos primeiros quatro anos da governação socrática, viu-se diante da oportunidade de chegar ao poder.
Uma oportunidade real, que teria poupado ao país os dois anos seguintes do segundo Governo de Sócrates, cuja sorte estava à partida traçada pela sua incapacidade de governar sem maioria absoluta (e de se entender com quem quer que fosse para formar esta maioria).
E foi aqui que todas as dúvidas - se é que existiam - se dissiparam.
Relembro que Sócrates estava em dificuldades (a crise financeira internacional já rebentara há bastante tempo) e que havia sondagens que colocavam o PSD de Manuela em São Bento.
O que se seguiu foi o maior maior espectáculo de incompetência e falta de habilidadepolítica de que há memória (e que, repito, custou dois anos - dois dolorosos anos - de inacção ao país).
 
PS e PSD estavam lado a lado.
Manuela chegou aos debates decisivos depois de se ter recusado a ter uma equipa a prepará-la para os confrontos decisivos. Na sua cabeça, não precisava de ninguém. Mesmo no século XXI.
 
O primeiro debate foi com Portas (para fixar o eleitorado mais à direita). O resultado foi desastroso. Portas esmagou de tal forma, que me é difícil recordar um debate em que um dos contendores tenha saído tão vergado.
O último dos debates foi com Sócrates. Outro massacre brutal, frente a um preparadíssimo adversário.
 
Num destes debates, Manuela trocou três vezes - repito, 3 vezes - o IRS com o IRC. E não se enganou nas siglas: o erro era real, e tinha a ver com a taxa de imposto. Não era um lapso. Foram 3 vezes a falar de uma taxa de tributação sobre as empresas que é impossível numa economia de mercado. Três vezes, num desnorte total.
 
Sócrates, mesmo em grandes apuros, venceu as eleições.
Não foi, na verdade, Sócrates (de quem o país já estava exausto) que as ganhou. Foi Manuela Ferreira Leite quem as perdeu. E com toda a justiça.
Porque o eleitorado se apercebeu que a suposta superioridade "técnica" de Leite era uma fantasia. Porque ficou patente a falta de preparação da candidata e a sua teimosia obstinada em rodear-se de gente pensante que a pudesse "preparar".
Porque se tornou evidente - não tenho receio das palavras - que tudo se tratava de uma enorme imposturice.
 
O povo percebeu tudo isto e, entalado (mas sábio), preferiu ver Sócrates acabar consigo próprio, sob pena de o seu fantasma (caso fosse desinstalado precocemente) ficar perenemente a pairar sobre os destinos do país.
E assim foi, com Manuela rapidamente desalojada (dada a sua manifesta incapacidade para receber o poder de bandeja) e com Passos Coelho pronto para receber no colo aquilo que dois dedos de testa teriam antecipado dois anos.
 
Aí está, pois, o Governo que temos.
Mas com a incansável Manuela sempre nos seus calcanhares. Rosnando. Em repetidos e sucessivos apartes, sempre a coberto da sua "competência técnica" em matéria financeira e orçamental.
 
Hoje, Manuela, numa conferência, decidiu dizer, para os media ouvirem, que "interessa pouco não entrar em falência se está tudo morto" (ver link).
É uma espécie de glosa a Keynes, que dizia, esse sim sabiamente, que a "longo prazo, estaremos todos mortos".
E Manuela concretiza: “se conseguirmos fazer a consolidação orçamental até 2014 interessa-me pouco não entrar em falência se simultaneamente está tudo morto.”
 
Digo eu: Basta! É demais.
Depois de ter aplicado umas finanças de pacotilha quando esteve no Ministério e ter inaugurado o furacão da austeridade (que nunca mais cessou, com maiores ou menores intermitências), depois de ter inaugurado a retórica da "tanga" e ter trazido, pela sua mão, o país para a recessão e o estado depressivo de que nunca mais se viu livre (no ciclo vicioso que conhecemos bem), como é que Ferreira Leite tem cara para vestir agora a pele do cordeiro preocupado com as repercussões sociais da austeridade?
 
Como é que Ferreira Leite se dá ao luxo de condenar a austeridade deste orçamento? Ela, a "dama de ferro" da austeridade.
 
Não consigo perceber.
E duvido que alguém consiga.
Chega!