quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Silva Lopes: com a força lúcida da razão

Tenho escrito pouco aqui. E não fora hoje, 17 de Outubro, ter ouvido, no jornal das 22h da SicN, Silva Lopes, provavelmente suceder-se-iam mais uns dias até que voltasse a estas paragens.
 
 
 
Nos dias que correm, é extraordinariamente difícil manter a lucidez no comentário e na análise. E a televisão tornou-se um desfile insuportável de opiniões medíocres e interessadas. Normalmente, um cortejo de banalidades.
 
Silva Lopes, com a competência habitual, luziu, hoje à noite, neste decrépito cenário.
Lúcido, reflexivo mas assertivo, politicamente desinteressado, tecnicamente coerente e sem catastrofismos ou demagogias baratas. Uma raridade, portanto.
 
Mas o que disse, então, Silva Lopes?
Coisas concretas e acertadas, sem falsas simplificações - outra extraordinária raridade, nos dias de hoje. E sem empolgamentos à moda de Medina Carreira.
 
Comecemos pelo Orçamento (OE).
Estribado em contas simples, mas sem serem de faz-de-conta, Silva Lopes explicou, serenamente, que o cenário macro-económico em que o Governo alicerçou o OE dificilmente se verificará, o que inevitavelmente redundará na necessidade de novas medidas de austeridade, a fim de que os compromissos com a troika em matéria de défice não sejam quebrados.
Até aqui, não há novidade: nenhum mortal crê no contrário. Não há memória de um OE em Portugal (a cargo deste ou de outro Governo) que assente em previsões económicas com aderência à realidade.
 
Ainda a propósito do OE, debruçando-se concretamente sobre o IRS, Silva Lopes disse também o que se mete pelos olhos dentro: a diminuição dos escalões do IRS dá cabo da progressividade do nosso imposto sobre o rendimento das pessoas físicas, a despeito de o Governo usar precisamente a bandeira da progressividade para justificar as recentes opções fiscais.
Aqui, Silva Lopes foi até mais longe: explicou que, ao invés, caminhamos para a regressividade e demonstrou-o com mais alguns cálculos que, todavia, não puderam ficar inteiramente claros porque a inefável Ana Lourenço, sempre de bujarda em bujarda, o interrompeu até ao limte do suportável.
Foi pena. No entanto, penso que tudo teria ficado mais nítido (e mais tempo teria sobrado) se Silva Lopes se tivesse limitado a vincar uma ideia simples (mas que toda a gente que sabe o que significa o conceito de imposto progressivo entende): quanto menos escalões diferenciadores dos rendimentos existirem, menor é a capacidade do imposto para fazer o tratamento diferenciado dos diferentes rendimentos, pelo que, obviamente, a taxa média do imposto se torna menos sensível às variações na capacidade contributiva (e, logo, menos progressiva).
 
Mas adiante, até porque o melhor estava para vir.
 
Silva Lopes já desancara o brutal aumento de impostos trazido pelo OE e as mexidas no IRS. A seguir, explicou, sem sobressaltos (pese embora os apartes abelhudos com que Ana Lourenço o ia distraindo), o que toda a gente também já percebeu: esta receita de que o Governo agora lançou mão não resolverá o que quer que seja, porque apenas acentuará o ciclo vicioso em que estamos enredados.
De facto, maior carga fiscal (a curva de Laffer que o diga...) e mais austeridade apenas trarão maior contraimento à economia, a qual, por sua vez, por estar cada vez mais anémica, gerará nas contas do Estado (até pelo minguar das receitas fiscais) novos buracos que, por sua vez, reclamarão mais austeridade. E assim por diante...
Isto é óbvio, e é o que a esquerda esclarecida tem dito, cheia de razão.
Faltava dizer o resto, que a esquerda irresponsável não diz, e que Silva Lopes deixou muito claro: rasgar o acordo com a troika e dizer "não pagamos" (mostrando, ou não, o rabo em manifestções de rua) não resolverá qualquer problema. Pelo contrário, agravará tudo. Como é evidente. Porque aí, sim, posta a troika em debandada, ficaremos com os rabos a descoberto, quer queiramos, quer não. Sem conseguir financiar a economia com um tusto, sem o Estado ser capaz de assegurar o mais elementar dos pagamentos.
 
E, então, "em que é que ficamos"?
 
Ficamos com a extraordinária honestidade de Silva Lopes, capaz de evidenciar as más escolhas que o Governo, desde Setembro, tem feito (não resisto a apontar que o ministro Gaspar foi para férias cheio de prestígio...), mas também de admitir que o problema não pode ser resolvido com um patético "que se lixe a troika".
Mais: como muito boa gente tem dito (Krugman, por exemplo - ver link), Silva Lopes também pensa - e bem - que o problema é apenas em parte nosso (e do nosso suposto vício de "vivermos acima das nossas possibilidades"). Indo à raiz dos problemas, tudo tem sobretudo que ver com os dogmas monetaristas e de estabilização dos preços a todo o custo, em que a UE sempre assentou. E numa terrível incompetência da União para lidar com a crise, na medida em que os empréstimos aos países em apuros são sempre curtos e fora de tempo, o que lhes impõe sempre mais austeridade e, por conseguinte, mais recessão (a qual, por sua vez, mais austeridade reclama).
 
Resumindo: o medo crónico que a Alemanha sempre teve dos surtos inflacionistas (dado o trauma da década de 30) tem tolhido a Europa de soluções que uma crise da gravidade desta exigia.
A incompetência das lideranças puramente tecnocratas e a fraqueza política da União faz o resto.
 
Já achava tudo isto.
Depois de Silva Lopes ter dito, fiquei com a certeza.
 
 
 
PS - Ana Lourenço, por favor, cala-te.