sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Cavaco: a maior rajada de sempre



Pedro Santos Guerreiro escreveu, no outro dia, que Cavaco daria agora o seu último tiro. E que esse tiro podia ser em cheio nos pés.

Cavaco não decidiu dar um tiro nos pés.
Decidiu descarregar por inteiro uma AK-47 em cada um dos pés. E à vez.

Vamos por ordem.

1) Cavaco tinha dito (num erro primário a que num "post" anterior já aludi) que exigiria uma solução sólida e estável de Governo. Isso significa uma maioria no Parlamento - o resto é conversa.

2) Na declaração ao país desta noite, Cavaco teve que engolir a exigência anterior. Era previsível. Falar demais dá sempre asneira.

3) Cavaco não quer um Governo de esquerda. Para isso, fez o que tinha que fazer: indigitou quem ganhou as eleições. Até aqui tudo bem (mais ou menos críticas não deixam de fazer desta solução uma solução aceitável e perfeitamente defensável). Isto, claro, esquecendo a exigência antes feita de um governo estável e sólido.

4) Mas Cavaco ignorou o óbvio para qualquer pessoa que perceba um vintém de política. Pior: ignorou o óbvio mesmo que se atenda a quais são os seus "objectivos".

5) Quais são os "objectivos" de Cavaco? O objectivo essencial é evitar um Governo de esquerda. Cavaco não tolera a ideia de sair da Presidência (que lhe correu horrivelmente) deixando no poder um governo de "esquerda". Isso era o epílogo completamente falhado - para ele - de uma carreira política com mais de 20 anos (ministro das finanças, primeiro-ministro e, finalmente, PR).

6) Mas o que entendeu por bem dizer Cavaco, hoje à noite, para servir o seu "objectivo"? Duas coisas essenciais: a) que indigitou Passos para formar Governo (o que é defensável e ninguém poderia criticar acerrimamente, fora argumentos de "perda de tempo" que não têm sentido); b) que considera inaceitável a formação de um Governo que congregue forças políticas contra o Euro, a NATO e os tratados europeus em geral. Resultado: o mais que previsível chumbo do Governo de Passos pode gerar um governo de gestão, que Cavaco parece preferir (pesem embora todos os inconvenientes) ao tal "governo de esquerda".

7) Deixei aqui de fora até agora, propositadamente, o apelo - pouco velado - aos deputados do PS para que se rebelem contra as opções de Costa. Mas já lá irei.

8) O efeito óbvio da declaração de Cavaco é só este: Costa rejubilou. Era difícil ter gerado um clima tão propício para que Costa saísse reforçado. Sabendo que já quase ninguém o tolera, Cavaco tinha só que fazer isto: indigitar Passos, aludir à tradição de 40 anos de convidar a força política mais votada para formar governo e... mais nada. Repito: nada mais! Zero!

9) Porquê o ponto anterior?
Pela razão simples de que isso evitaria um frentismo de esquerda que, agora, faz sentido (e que contraria o "objectivo" cavaquista). É como num jogo de cartas: na maior parte deles, é possível dizer "passo"! E era justamente isso que Cavaco, atendendo mais uma vez aos seus "objectivos", deveria ter feito! Simples e eficaz: indigitado Passos, o ónus passaria, uma vez mais, para Costa, para o BE e para o PC, que se veriam forçados a derrubar o Governo recém-criado através de moção de rejeição. A seguir, as cartas tinham sido dadas outra vez e o PR podia lançar nova cartada. Mas o "odioso" do ónus do derrube do Governo e da "instabilidade" já tinha dono: Costa, Catarina e Jerónimo.

10) Acresce que Cavaco apelou à "responsabilidade" dos deputados eleitos pelo PS, a querer significar que pelo menos parte deles (os da "ala mais à direita") deveriam viabilizar o governo PSD/CDS.
Este trecho do discurso foi de bradar aos céus em termos de táctica política rudimentar.
O que Cavaco conseguiu com isto foi garantir que jamais esses deputados do PS se poderão rebelar. Quereriam eles ficar com o ónus de desrespeitar as opções da Comissão Política Nacional do partido e do Secretariado para fazerem... o que Cavaco os aconselhou a fazer?? Só num mundo habitado pela Alice no País das Maravilhas!

11) Foi por isso que Costa rejubilou. Os problemas internos de união no PS com que se deparava estão, a partir de hoje à noite, resolvidos. Para quem no PS não desejava uma solução com o BE e o PC agora é... "comer e calar". Tudo o resto será agora visto como uma traição, em benefício da "direita", ou, ainda pior, de Cavaco.

12) Por último, e sob pena de não ter sentido nenhum a sua declaração de que Portugal não pode ter no Governo (ou a apoiá-lo) forças políticas que rejeitem os compromissos do país com a UE  e a NATO, Cavaco tornou claro que prefere um Governo de gestão a um "governo de esquerda" maioritário.

13) O último ponto é indesejável a todos os títulos, desde logo em razão das várias coisas que há para decidir, a nível governativo, com urgência.
Mas é aqui que o egoísmo de Cavaco vem mais ao de cima: esta solução, malgrado miserável, permitiria que terminasse o seu mandato como PR sem um "governo de esquerda" no poder. A batata escaldante passaria para o próximo PR (e não resisto aqui a dizer que Marcelo se divertirá bastante com ela).

14) Um Governo de gestão é a solução mais aberrante de todas e que ninguém pensava que Cavaco considerasse como opção. Capacidade de acção? Zero. Legitimidade política? Zero.
Só mesmo Cavaco...

15) Qual é a consequência óbvia? Qualquer ministro desse governo de gestão deve imediatamente demitir-se.
Primeiro, porque a constituição de um novo governo (entretanto rejeitado pela AR) lhe retira qualquer margem de credibilidade e legitimidade políticas.
Depois, porque a crispação de uma decisão presidencial que partira "o país ao meio" (dividindo-o, pura e simplesmente, entre "esquerda" e "direita") tornaria o exercício de qualquer função governamental verdadeiramente... ingerível!

16) Conclusão: mais uma vez, bastava a Cavaco ter-se ficado pelo óbvio (indigitar Passos e ponto final). Era táctica básica. Mas Cavaco desistiu para sempre do "estilo bolo-rei" e agora não resiste a abrir a boca para lá do essencial. Ora, o efeito "boomerang" de cada uma das coisas que diz é agora, neste final triste de mandato, uma coisa que se percebe mal que ele ainda não tenha percebido que sucede sempre.
Em suma: estamos tramados.