sábado, 9 de abril de 2016

João Soares: contra ventos e marés - não por ele, mas pelo que importa

A semana terminou com júbilo dos "media" e nas redes sociais: João Soares disse o que não devia e, por isso, foi defenestrado do governo.
Antes de mais, quero dizer que não conheço João Soares, não aprecio o estilo, e deploro a sua competência política. Nunca votei nele e dificilmente o faria - é um direito meu.
Assente - e bem assente - o que precede, eis o que se me oferece dizer sobre a troca de galhardetes ente João Soares, Vasco Pulido Valente e Augusto Seabra (é de uma verdadeira troca de galhardetes de que se trata: Seabra e VPV atacaram primeiro, Soares respondeu depois).
Vivemos hoje num mundo - em Portugal, copiando o que vemos noutros sítios - em que há uma sede de sangue implacável sempre que este jorra de feridas pequenas.
As grandes feridas já nos geram pasmo. E cuidados.

João Soares, num post facebookiano das 6:22 da manhã, prometeu uns tabefes a Augusto M. Seabra e a Vasco Pulido Valente.
Pela hora, é provável que tenha acordado mal disposto.
Esta promessa de uns tabefes (mera figura de estilo, como é óbvio) não é, no meu entender, a pior parte. A parte mais lastimável é aquela em que Soares, dando uma volta com pouco estilo, chama alcoólicos aos outros contendores.
Problemas evidentes disto: Soares era ministro e não pode falar ao mundo como um comum mortal, porque há uma espécie de código, ainda perene, que instila a convicção na populaça de que as figuras do estado têm qualidades semi-divinas. Duvida-se, aliás, se continuarão a usar a casa de banho.
Até aqui, tudo bem.
Mas sejamos sérios: leia-se a crónica de VPV (e eu sou suspeito porque gosto de muitas delas) e encontram-se lá criticas ao carácter e qualidades pessoais de Soares.
Não me interessa agora se bem ou se mal: o que é facto é que lá estão. E facto é também que Soares não deve ter gostado (e está no seu direito, porque ter-se tornado ministro não o obriga a engolir tudo - especialmente, o que vai para além da crítica ao seu desempenho governativo).

Provavelmente agastado e furioso com coisas que acabara de ler, Soares, eterno em tiros nos pés (foi assim que conseguiu perder a CML para Santana Lopes), dirigiu-se ao computador e escrevinhou o que foi capaz.
Reconheça-se que é difícil açoitar VPV por escrito (Miguel Sousa Tavares, por exemplo, que o diga). Vai daí, Soares, num estilo pobre, foi ao que tinha mais à mão: declarou apenas que distribuiria uns tabefes aos cronistas, mal tivesse oportunidade.
Oferecer retoricamente uns tabefes deve ser a arma argumentativa mais fraca nos dias que correm. É apenas o último recurso de quem perdeu a paciência e não tem arte para mais.
Mas é só isso.
É um pequeno episódio - mesmo muito pequeno - que mostra bem ao que chegámos.
Toda a gente da direita veio pedir a cabeça de Soares, num moralismo deprimente. Toda a gente de esquerda enterrou a cabeça na areia, sem argumentar. Para mais, era um ministro pouco importante: o da cultura.
O que quero dizer com isto é que, hoje em dia, como tantas vezes tento lembrar, já não há opinião não sectária (ou que pense pela sua cabeça, sem ser em manada) e que os media ganharam uma preponderância grotesca na determinação do que se pensa, muitas vezes - quase sempre - defendendo "ad nauseam" o "politicamente correcto".

Quem vir serviços noticiosos e espaços de opinião na TV (eu, para expiar os meus pecados, vejo), chega facilmente à conclusão da indigência aflitiva dos "jornalistas".
Sabem zero de Direito (isso posso garantir), embora opinem sobre casos judiciais e outros fenómenos jurídicos. Sabem zero (ou menos do que isso) de economia, embora de há uns anos para cá não falem de outra coisa. E sabem zero de cultura (de que também sei pouco): para eles, o mundo cultural é uma espécie de feira de "eventos".

Apanhado facilmente pelos "media" - que se indignaram com uma suposta "ameaça física" de João Soares a dois membros da "comunicação social" (ainda me hão-de explicar esta, porque acho que VPV insultaria quem lhe dissesse que é da "comunicação social"...) - o ministro estava perdido, sobretudo graças à sua intrínseca inabilidade política.
Em vez de ter ficado calado (para não dar lume à coisa), Soares veio perguntar - por SMS dirigido aos jornais (!) - se "tinha assustado alguém" (justamente para que se percebesse que só tinha sido uma questão de estilo: não queria açoitar ninguém). O que até tem a sua piada, mas é politicamente asnático.
Com isto fez crescer a bolha de criticas atávicas dos comentadores das televisões: veja-se, por exemplo, o eterno Bernardo Serrão (sim, aquele que perguntou, em directo, a Teresa Caeiro, na tomada de posse do anterior governo, porque tinha escolhido o vestido que levava à cerimónia...) que, tendo dificuldades em redigir o próprio nome, se lançou numa crítica lancinante ao insuportável comportamento do ministro.
Resumindo: no que começou por ser um episódio sem nada de especial, Soares conseguiu amplificá-lo e enredar-se numa teia que lhe fugiu completamente ao controlo.
Por pouco menos que nada!

Há primeiros-ministros que podem ter roubado milhões (não sabemos) mas que têm uma legião obstinada a defendê-los.
A João Soares ninguém defendeu.
Quase que apetece dizer: antes "gamar" do que "ameaçar".
Acho que também valia perguntar: está provado que foi Soares quem escreveu na sua conta de facebook? Não é que interesse, mas é só para se perceber a desigualdade com que os assuntos são tratados - nos media e nas redes sociais.

Costa, sempre politicamente magistral (e não interessa se se gosta ou não dele: enquanto o menosprezarem, irá de sucesso em sucesso, a menos que a Europa o trame), aproveitou logo para pôr borda fora um ministro que só escolhera por causa dos equilíbrios internos do PS. E não satisfeito, ainda disse que Soares "teria sido um óptimo ministro da cultura".
Mas se teria sido "tão bom" ou "óptimo" (o que, aliás, toda a gente duvida, inclusivamente o próprio Costa), porque aceitou o PM a demissão (que o próprio já antes induzira, através de uma curta declaração à imprensa)?
Porque as redes sociais - que o jornalistas muitas vezes copiam - e os serviços de imprensa já tinham feito todo o trabalho.
Para gáudio dos internautas. Para gáudio dos "jornalistas". Para gáudio de uma certa direita (que acha uma vitória colossal ter caído o primeiro membro do governo da geringonça). E para gáudio de uma certa esquerda (que se acha moralmente superior).

O triste disto é que o episódio mostra uma série de verdades insuportáveis:
1) em vez de discutirmos o que interessa, passamos a vida a rebolar de gozo com coisas minimais: as frases infelizes de Soares não são razão para que alguém "rasgue as vestes";
2) na comunicação social, atacam-se sem piedade pequenas "boutades", mas tratam-se respeitosamente (e com medo - porque não dizê-lo?) aqueles que são suspeitos de terem sido artífices de malfeitorias graves;
3) ser ministro passou a ser aquilo mesmo que VPV dizia, nas suas antigas crónicas, ser "perigoso" ("o mundo está perigoso"...).
4) a "opinião pública" não perdoa frases infelizes, mas elege alegremente Isaltinos, Valentins Loureiros, Macários, Judas, Avelinos, etc. Temos o que merecemos.

Não é que goste de João Soares. De facto, nunca gostei.
Mas agora corro o risco de gostar um bocadinho, o que me aborrece.
Tenham dó.