terça-feira, 8 de março de 2016

A liberdade para MORRER

Guardei durante vários dias comigo um texto fabuloso de Cristina Líbano Monteiro intitulado "Morrer".
O sobretítulo é "Eutanásia", como se vê neste link:
http://observador.pt/opiniao/morrer/

Tenho o gosto de conhecer a autora: primeiro, fui seu aluno; depois, seu colega. Espero que me perdoe a ousadia de agora me dirigir a este seu texto, que tanto me fez pensar.
Respigo do seu artigo - que é um grito de que, no intento último, discordo (mas de que gosto e que muito respeito) - o que, para mim, mais releva nele.
Aqui vai.

"Gostava de morrer como vivi. Com a mesma liberdade, com a mesma teimosia, com a mesma gratidão a quem cuidou de mim".
Percebo.
E percebo porque é o ser-se livre que aqui avulta.
Mas, sobretudo, aceito - porque, como mostra o texto de Cristina Líbano Monteiro, também a autora compreende o "ser-livre" como um "ser-com-o-outro", o que bem se observa aqui:
Gostava de morrer quando morrer. Receio dar ordens à morte. (…) E se cortando assim a relação com os outros, com toda a gente, ainda me faltasse dizer alguma coisa a alguém: um pedido, umas palavras de amor, de perdão…? E se rompendo assim a relação comigo própria, não chegasse a encontrar o sentido de tudo isto, da minha vida e da minha morte”?

Sem falar propriamente de eutanásia – fala em muito mais do que isso –, Cristina Líbano Monteiro dirige-se ao tema com a inteligência de sempre: privilegiando a ideia de liberdade como justificação para a sua negação ao direito à morte (e não apenas à “eutanásia”).
É o cerne da questão: no debate que aí está, é a liberdade (a liberdade de morrer, ou a liberdade de escolher a morte ou o momento dela) o tema central - e, no fundo, o fulcro dos argumentos de quem se bate pelo direito a morrer.
Cristina Líbano Monteiro sabe-o bem e foi por isso que escolheu vir por aqui. É esta a razão porque escolhe dizer – como se isso matasse a questão – que quer ser livre... para não morrer.

Como acima disse, o texto de Cristina Líbano Monteiro foi, desde logo, tão importante para mim por uma razão: porque ser livre (no caso, ser livre de recusar a morte) surge aqui como uma emanação dessa ideia fundamental de que, na verdade, só somos acabadamente “nós” na relação “com os outros” – sem eles, sem os que nos amam (ou não), sem a presença que temos neles, não existimos.
É, no modo como vejo as coisas, a verdade.
E é por isso que há um par de anos escrevi (para ler alto numa ocasião que não esqueço) que o suicídio, ao invés do que muitas vezes se ouve, não é a expressão máxima de liberdade. Porque é a opção – o exercício puro e último da vontade - de cortar irreversivelmente com os outros. 
Ora, se ser livre é, para mim, também “ser-com-o-outro” (e não só o mero exercício individual de uma vontade qualquer, porque não somos “nós” sem os “outros”) não pode o suicídio ser a expressão “máxima” do “ser-livre”. É ainda expressão de liberdade mas, amputando os “outros” de “nós”, não é o pináculo do ser-se livre. É, antes, um último reduto de liberdade – de uma liberdade já amputada (porque excindida dos outros), mas que não deixa de ser… livre.

Nas mágicas palavras de Anselmo Borges, morrer é “nunca mais ser”. Também (digo eu) porque deixamos irreversivelmente os outros.
Por isso penso compreender tão bem o grito a que o texto de Cristina Líbano Monteiro dá voz.
Sucede que se queremos falar do direito a morrer – do “direito a escolhermos a morte” (o que é bem mais do que o direito a exigirmos que nos auxiliem no acto do nosso suicídio quando já não somos aptos a praticá-lo sozinhos) – não pode ser a nossa liberdade de querermos permanecer vivos que arruma a questão da possibilidade do exercício da liberdade de escolhermos a morte.
Tornava tudo mais simples, mais certo. Mas não é assim.

Diz Cristina Líbano Monteiro: “agarro com as duas mãos, com senhorio, o meu ser em dor. Peço à minha liberdade que me acompanhe até ao fim. Autodetermino-me a morrer quando a morte vier”.
Admiro-a na sua opção – livre – de se auto-determinar a morrer “quando a morte vier”. A eutanásia (a verdadeira eutanásia – que é a pedido de quem quer morrer) não colide com isto (sob pena de se converter em mero homicídio).
Mas diz que “pede” á Sua liberdade que a acompanhe até ao fim.
Eu não “peço” nada à minha liberdade: exerço-a, pratico-a. Ela não está fora de mim.

Diz depois Cristina Líbano Monteiro: “não permitirei que ninguém me mate”.
Eu, sem o meu consentimento, também não: não suporto a ideia de que alguém decida roubar-me a vida sem eu querer. Mas quero manter a hipótese de – livremente – poder optar por um dia morrer, de poder mudar de ideias nesta vontade que hoje é a minha: a de viver.
Diz ainda Cristina Líbano Monteiro, noutra passagem belíssima:
Gostava de morrer com a mesma liberdade (ou falta dela) com que nasci. Dizem que então chorei e que foi bom tê-lo feito. Dizem que também sofri, pois talvez tendesse a viver para sempre no ambiente fechado em que até então cresci”.
Já eu não quero morrer com a mesma falta de liberdade com que nasci. Porque foi para isso que nasci – para o milagre de passar a ser livre.
Eu quero poder sonhar que voltarei ao ventre de minha mãe. E quero ser livre de acreditar que lá poderei regressar. É um direito meu.

Por fim, guardarei de Cristina Líbano Monteiro isto que também diz:
Gostava de morrer quando morrer. Não quero programar o dia em que hão-de chorar por mim. E se não chorarem? E se chorarem pelo abandono a que os votei, não por mim? E as lágrimas forem de quem se dispunha a cuidar-me, tornando-se mais pessoa, mais capaz de sentir o que a une aos outros?
Digo eu:
As lágrimas de quem se dispunha a cuidar-me serão também as minhas – as mesmas com que morrerei nos olhos.
E o choro dos que chorarem pelo “abandono a que os voto” será fugaz; não lhes imporei, assim, um sacrifício insuportável. Porque me amam, compreendê-lo-ão (amando-me porque amam o que sou “eu” e as minhas escolhas a cada momento; tal como os amo por serem” eles”): é isso que significa amarem-me.

A minha teimosia é (também) querer dar ordens à morte - mesmo que não possa. Porque compreendo a morte como a celebração da vida (que amo): não há morte sem vida, mas não haveria vida sem morte.
Sim, sou livre.

Obrigado pelo Seu texto, Cristina Líbano Monteiro.