Quis deixar passar uns dias antes de escrever qualquer coisa sobre o debate entre Francisco Assis e António José Seguro. Tudo porque cada vez mais me convenço que, ao contrário do que se arvorou em doutrina dominante, qualquer debate televisivo do género é importante. E dado que acredito que, muitas vezes, a mera distância de meia dúzia de dias permite descobrir outros ângulos nas coisas e apaziguar certas vertigens do momento.
Com este debate, porém, alguns dias passaram sem que o que escreverei agora seja diferente do que teria escrito no minuto seguinte ao debate findar. Isso é incomum.
Antes das próximas linhas, convém esclarecer o seguinte: não sou militante (nem simpatizante) do PS, do PSD, ou do CDS. Nunca votei no PCP e muito menos no Bloco de Esquerda (a diferença está em que jamais votarei neste último). E não conto que algum destes dados se altere no futuro próximo.
Eram 22h20 quando o debate se iniciou, moderado por Ana Lourenço.
À mesa estavam o candidato que tem na mão uma vitória certa (Seguro) e o candidato (Assis) que, segundo o seu opositor (Seguro), "fala muito bem".
Vamos por partes. Vale a pena.
Às 22h26, já Francisco Assis tinha traçado, com clareza, o contexto em que se desenrolam estas eleições no PS. Assumindo que o partido esteve 12 anos no poder nos últimos 15; destacando que o PS dispõe agora de tempo (porque não há eleições à vista) para se repensar e analisar erros (que destacou não serem recentes, mas estruturais) e para definir que tipo de oposição quer fazer, de modo a ser alternativa outra vez.
Até este momento, Seguro (que nem entrou mal - foi o seu melhor minuto e meio) só tinha conseguido dizer (logo a abrir o debate) que já afirmara a sua vontade de se candidatar a secretário-geral há cerca de um ano e que tamanha antecedência não tinha inconveniente algum. Foi o que de mais substantivo afirmou em 50 minutos.
Mas ainda eram 22h26 quando Seguro retomou a palavra.
Começou por dizer, ainda confiante: "Eu tenho uma maneira de ser leal ao meu partido e prefiro falar dentro dos órgãos do meu partido".
Estava dado o registo de que Seguro seria incapaz de sair durante todo o debate, num exercício patético e deprimente, que teve o seu momento alto no momento em que declarou, mais à frente, com ar solene, que gosta muito do PS e dos seus militantes.
Para que conste, eu também gosto muito do Benfica.
Alguém tinha dito a Seguro (e essa parte ele compreende) que isto era um debate para umas eleições internas e que os votos que havia para ganhar eram só de militantes. Convinha, por isso, exercitar, em todas as tonalidades possíveis, o "amor" ao partido. Seguro não se fez rogado e durante a refrega chegou a ser comovente ver a forma desajeitada como aproveitava cada segundo para, com ar vibrante, falar do "seu" partido socialista e "das militantes e dos militantes". Uma coisa lhe serve de desculpa: tudo o que é na vida, Seguro deve-o ao partido. E fez questão de o lembrar: "Eu quero é ser útil ao partido socialista. Fui sempre útil ao partido" (22h27: momento épico em que se descobre que não interessa perder um segundo com reflexões sobre a experiência governativa recente).
Às 22h28 da noite, Seguro atirou a primeira farpa a Assis. A única que tinha à mão.
Meio à socapa, disse que tinha tido em Braga um resultado melhor, nas últimas legislativas, do que Assis garantira no Porto. Assis sorriu logo. E não deixaria passar.
Mas ainda antes da resposta de Assis (eram 22h29) veio o momento que não esquecerei. Seguro declarou, com ímpeto: "EU QUERO SER PRIMEIRO-MINISTRO DESTE PAÍS".
Foi das poucas vezes na vida que senti um arrepio na espinha. Há coisas que é preciso temer com pavor.
Imparável, Seguro delineou, em duas penadas, (ainda antes de Assis poder abrir a boca) os seus planos imediatos:
(i) Ficámos a saber que Seguro pretende que "se inicie um novo ciclo na vida do partido. Uma nova forma de fazer política no interior do PS". De que modo? "DANDO MAIS VOZ E PODER AOS MILITANTES DENTRO DO PS"!! Como? "Criando FORMAS e UMA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA". What?
Depois do arrepio na espinha, os comuns mortais tinham agora direito às primeiras gargalhadas.
Afinal, é nesta fórmula obtusa e cheia de nada (faltam-me as expressões, confesso) que Seguro converte a habitual prosápia em redor da necessidade de "abrir" o partido. A estultícia no seu esplendor.
(ii) Fomos também informados, com grande pompa, que Seguro pretende reactivar o gabinete de estudos do PS. A utilidade dele fica logo comprovada pelo facto de ser um organismo "de estudos" que Seguro já liderou em tempos.
Mas agora, o candidato pretende que o órgão se passe a chamar "LABORATÓRIO DE IDEIAS".
Sim, "laboratório de ideias". Um primor.
E, nas palavras do insuperável Seguro, um laboratório "aberto". Como não podia deixar de ser.
E "aberto" a quê? Aos "militantes", claro! Porque há "milhares de militantes com uma enorme inteligência, uma enorme capacidade" que "querem dar os seus contributos nas áreas da educação, da saúde, da justiça, do desenvolvimento regional"...
Simplesmente genial. E enternecedor.
Ficou à vista como Seguro pretende implementar "uma nova forma de fazer política" no partido. Sempre com muito amor e comovedora afeição, obviamente.
Como já passava das dez e meia da noite, Assis começava a impacientar-se com as imbecilidades que ouvia. E não escondia o desdém na expressão, até porque sabia que tem as eleições perdidas e que, portanto, não havia constrições nem riscos em açoitar o antagonista.
E assim foi.
Contundente, Assis explicou a Seguro que as poucas décimas (sim, décimas) que tivera a menos no Porto se tinham ficado a dever, única e exclusivamente, ao facto de, em Braga, não existir CDU nem BE.
É a mais absoluta das verdades. Incomodado, Seguro interrompeu Assis, rogando-lhe que não baixasse o nível do debate. Um nojo.
E um nojo perturbante, porque revelador: Seguro é capaz de lançar um ataque soez e, quando em dificuldades perante a resposta certeira, refugia-se logo no "nível do debate", como se fosse o guardião da moral política e dos valores. Cobardemente.
Uma cena de escola primária. Ou de "militantes", que é, em geral, equivalente.
A questão só ficou arrumada quando Assis explicou a Seguro que o resultado de ambos (quer em Braga, quer no Porto) tinha sido igualmente "mau".
Indisposto e irritado, Seguro atirou, logo a seguir, a Assis: "TU FALAS MUITO BEM!!!".
Este homem não se coíbe de esclarecer que, para ele, a boa retórica (e, no caso de Assis, tão-somente a clareza de ideias e a boa articulação do discurso) é um vício lamentável, que deve estar ausente da política. Da "sua" política: a do "seu" partidozinho, com "as militantes e os militantes" empenhadinhos em dar os seus muito valorosos "contributos", feitos de empenho e dedicaçãozinha ao querido partido.
Surreal.
Se pensarmos no verdadadeiro ícone do regresso da retórica à política, OBAMA, é de temer que Seguro lhe cuspa na cara, invejoso, se alguma vez se cruzar com ele. Espera-se que não. Não é provável, contudo, que Obama seja sujeito à tortura de visitar o "laboratório de ideias" no qual Seguro vai estar enfiado nos anos vindouros, rodeado de "militantes", enquanto se aguentar como secretário-geral do PS.
Seguiu-se a rábula em que Seguro se atirou a Assis pelo facto de este ter dado uma entrevista na qual sustentava que Seguro tem a mesma "estrutura mental" que Passos Coelho.
Seguro fez logo uma burla de etiquetas, afirmando que fora acusado de ter a mesma "estrutura moral" de Passos. E, em novo exercício grotesco, recomendou a Assis que se acalmasse um bocadinho.
Sem comentários.
Até porque Seguro esclareceu que a prova das suas diferenças em relação a Passos reside num obscuro debate que ambos tiveram, há cerca de 2 anos, em Santarém, comprovativo do "oceano" que os separa em termos "ideológicos".
Teme-se pela sanidade mental de quem lá esteve.
Às 22h37, Seguro explicou, de forma hilariante, que o segredo para superar a actual crise estará em apostar no apoio à produção do sector agro-alimentar!
Ainda não consegui parar de rir.
A partir das 22h39 pôde ver-se um pouco da gigantesca diferença: Assis fala nos pontos críticos da actual crise. Chega a falar nos eurobonds. Disserta sobre a necessidade de compatibilização entre medidas de austeridade e medidas de incentivo ao crescimento económico. Esclarece que o PS não deve apenas dar apoio àquilo que for feito em cumprimento do memorando com a troika, mas, eventualmente, a algo que transcenda o memorando, sempre que isso se justifique.
Às 22h42, assistiu-se a outro momento de antologia.
Seguro esclareceu que se fosse, no momento actual, primeiro-ministro, não estaria fechado no gabinete. O que andava a fazer era um périplo pelas capitais europeias, procurando ter reuniões bilaterais com líderes de países europeus com problemas semelhantes aos nossos.
Quer dizer: no momento actual, o plano aconselhado por Seguro seria tomar cafézinhos e cházinhos com líderes gregos, irlandeses e espanhóis. Com muito amor, presumo, para não fugir à regra.
Graças a Deus, Seguro está longe de voar à borla na TAP.
A seguir a este episódio, o debate esmoreceu.
Porquê? Porque os temas tratados tinham que ver com uma visão estratégica da Europa e com o drama com que esta se confronta. Com os desafios ideológicos que se colocam à esquerda democrática europeia. Com a génese do próprio compromisso europeu e o seu sentido actual.
Naturalmente, Assis pôde brilhar alguma coisa, graças à densidade do discuso (o que duvidosamente o terá ajudado, porque não se trata de coisa que "militante" que se preze possa tolerar).
Seguro, esse, sumiu-se, como de costume, em meia dúzia de banalidades.
Às 23h04, já com o debate no seu final, iniciou-se o último round.
Assis introduziu a proposta de haver "primárias" no PS, abertas a não militantes, já nas próximas autárquicas.
Como fica logo à vista, goste-se ou não da ideia, esta é uma proposta que, de facto, "ABRE" um partido político à sociedade civil. O resto é conversa mole e inaudível. Ou prosápia sem nexo, como aquela que Seguro ensaiou no início do debate, quando afirmou que pretende "abrir" o partido através da instauração de uma "nova cultura democrática".
Seguro, evidentemente, é contra a proposta de Assis.
Começa por declarar, enfático: "eu não tenho nenhum problema com os socialistas. Gosto muito dos militantes do meu partido! É por isso que eu me candidato!".
Depois, saca de um caderninho que, supostamente, concita dúvidas, anseios e propostas que os inefáveis militantes lhe foram comunicando ao longo da campanha interna, noutro inolvidável número circense próprio da cultura "jota".
Por fim, Seguro declara - sem se aperceber da terrível contradição - que quer abrir o PS atribuindo aos militantes o direito de escolherem os seus candidatos (como se de novidade se tratasse). Abrir o PS é, pois, dá-lo aos militantes e só a eles. Sempre eles. Como sempre foi.
Fica-se esclarecido.
A discussão prosseguiu, com Assis a tentar explicar os méritos da sua ideia. Até que, num momento que sumariza o debate, Seguro rebenta num pranto lancinante: "NÃO DENIGRAS O PS! É SÓ A ÚNICA COISA QUE EU TE PEÇO...NÃO DENIGRAS O PS"!!!
Eram 23h14 da noite.
Já chegava.