quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Outra vez Anselmo Borges




Já antes aqui escrevi
que, à época,
não tinha compreendido bem
o imenso privilégio
que foi ter tido
Anselmo Borges
a casar-me.
Sei a quem o devo
e, hoje,
não podia estar mais ciente
desse privilégio.

Mas vamos

ao que verdadeiramente interessa:

"(...) se a constituição do homem é a de um ser unitário, 

também é fundamental entender que é um ser em tensão.
Habituados a pensá-lo como "animal racional", 
rapidamente esquecemos a animalidade,
para ficarmos apenas com a razão abstracta. 
Escreveu Hegel: "O que é racional é real e o que é real é racional." 
Mas vários filósofos, como Nietzsche, Freud, Ernst Bloch,
chamaram a atenção para o facto de a razão, o logos puro, 
não explicar o processo do mundo:
na raiz do mundo está um intensivo da ordem do querer.
Quem mais sublinhou isso foi Schopenhauer:
há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da razão:
o impulso, a "vontade".
Portanto, no ser humano, há o impulso e a razão, a pulsão e o lógico,
o afecto e o pensamento, a emoção e o cálculo.
O próprio cérebro, que forma um todo holístico, tem três níveis;
Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num,
mas também em conflito:
o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo,
o cérebro da afectividade, e o córtex com o neocórtex,
em conexão com as capacidades lógicas.

A luz racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano inconsciente

e também tenebroso.
Por isso, nem sempre conseguimos viver em harmonia
e é preciso estar de sobreaviso para não se cair em catástrofes mortais,
também porque as respostas emocionais podem escapar ao controlo racional,
por causa do chamado "atalho neuronal" e do "sequestro emocional":
as informações são lidas pelo cérebro emocional e só depois pelo racional.
Quem nunca fez a experiência de deitar as mãos à cabeça:
"Como foi possível eu ter feito isso!.. Aí, não era eu."
Sem emoção, o que seria a vida, na relação com os outros,
na própria ética, no que à música se refere?
Mas não se pode esquecer a razão.
O ser humano é rácio-emocional.
Para lá desta, há muitas outras tensões.
Vimos da natureza, somos natureza, mas contrapomo-nos à natureza,
é em nós que a evolução toma consciência de si:
somos da natureza e na natureza
e nem sempre a pessoa consegue integrar a natureza.
Vivemos no presente, sempre no presente, mas vimos do passado,
voltados para o futuro;
se perdêssemos a memória, não perderíamos apenas o passado,
mas a identidade,
já não saberíamos quem somos; e estamos sempre voltados para o futuro,
é ele que nos alenta pela esperança.
Já somos, mas ainda não somos o que havemos de ser.
Somos finitos, mas estamos constitutivamente abertos ao Infinito
e perguntamos ao Infinito pelo Infinito, isto é, por Deus.
Sabemos que sabemos e sobretudo sabemos que não sabemos e,
por isso, perguntamos ilimitadamente;
daí, vivermos no desassossego, inquietos.
Somos limitados,
mas a condição de possibilidade de darmos conta do limite é o ilimitado,
de tal modo que, indo ao fora de nós, ao que há e ao que não há,
ao real e ao possível e ao impossível, ao ser, vimos a nós
numa intimidade única.
Estamos em nós e no outro de nós: dentro e fora de nós.
E desdobramo-nos, reflectindo,
de tal modo que, vendo-nos como sujeito que se objectiva,
tomamos consciência da nossa identidade.
Ah, e o outro! Vamos ao encontro do outro,
mas do outro que é outro como eu,
mas sobretudo um eu que não sou eu: um outro eu e um eu outro.
E lá está o encontro, feito de alegria, de fascínio,
mas também o desencontro da ameaça e do possível conflito.
Saber e sabedoria têm o mesmo étimo: sapere, relacionado com sabor.
Para viver, não basta o saber, que é sobretudo teórico, racional.
A sabedoria de viver implica a consciência das tensões
e conviver sabiamente com elas".

Anselmo Borges - Diário de Notícias