quinta-feira, 16 de junho de 2011

Precisamente

"Em política, é necessário pensar para lá das evidências, quase sempre tão atractivas como ilusórias. Digo isto tendo em mente a "evidente" viragem à direita do eleitorado, que reuniu um número de votos significativamente superior ao de toda a esquerda somada.
Trata-se de um dado inquestionável, mas sobre cujo significado convém reflectir, quer tendo em conta o actual contexto de crise em que o País vive quer tendo presentes os novos parâmetros da democracia contemporânea e o modo como os cidadãos a vivem e praticam. Deste ponto de vista são três os pontos a sublinhar, que condicionarão fortemente os próximos tempos.
O primeiro é que os resultados de 5 de Junho traduziram (como de resto acontece cada vez mais frequentemente) muito mais uma rejeição do poder em funções, e sobretudo de quem o protagonizava, do que verdadeiramente uma opção. Este facto torna os primeiros tempos cruciais para o novo primeiro-ministro: lembro que, numa circunstância análoga, em 2002, foi justamente esta a prova que Durão Barroso não conseguiu passar, tendo este facto pesado no fracasso do seu mandato.
O segundo é que, a par com a mudança de maioria, que teve uma clara expressão política na "coligação" PSD/CDS, nestas eleições manifestou-se também, e de diversas formas, uma intensa insatisfação com a nossa democracia, que não se deve ignorar: com a forma da representação, com o papel dos partidos, com a selecção dos elegíveis, com a falta de clareza dos processos de deliberação, com a irresponsabilidade dos decisores, com a corrupção dos agentes políticos e não só, tudo a apontar par uma profunda descredibilização da democracia portuguesa que, na trajectória de crise aguda em que nos encontramos, pode ter consequências tão inesperadas como nefastas. (Foi a este estado de espírito que o "10 de Junho" deste ano deu mais destaque, infelizmente na forma de uma catilinária tão saudosista quanto frustre, que mais parecia uma leitura das "farpas" da Campanha Alegre de Eça de Queirós, já lá vão 140 anos!...)
O terceiro ponto tem a ver com o significado das eleições nas democracias individualistas de massas, em que vivemos. Tradicionalmente, o voto aprovava um programa e escolhia um governo, que tinha quatro anos para, sem grandes perturbações, o executar. Mas também aqui a tradição já não é o que era, e agora as coisas já não se passam de todo assim.
Nas eleições actuais escolhe-se sobretudo uma personalidade, numa opção que se associa normalmente à rejeição de uma outra, e o resto é uma constelação de ideias, de intenções e de sinais que ficam à mercê da opinião pública e do incontornável, complexo e contraditório jogo de interesses que ela traduz, através dos poderosíssimos instrumentos mediáticos que todos conhecemos bem.
Dizer-se, como se tem dito, que nestas eleições o programa da troika foi aprovado por 80% dos portugueses, somando os votos do PSD com os CDS e os do PS, é um disparate político que não tem correspondência na realidade. De resto, se assim fosse, por que razão os mesmos que o proclamam se haveriam de mostrar tão preocupados com o abismo que se pode abrir entre a maioria política e a maioria social?!...
É fundamental ter presente que a democracia - e insisto neste ponto há muito tempo - deixou nas últimas décadas de funcionar com base na confiança cega e no cheque em branco. Pelo contrário, ela funciona crescentemente com base na suspeita e no escrutínio permanente, que só podem aumentar - e muito! - em época de crise. A democracia desdobra-se hoje em dia numa permanente, multiforme e intensa contrademocracia, como Pierre Rosanvallon tem mostrado em análises fulgurantes, que os nossos políticos ganhavam muito em estudar.
Apesar de ser nas eleições que ela nasce, a confiança dos eleitores nas sociedades contemporâneas não fica, contudo, refém do voto. Ela fica como que suspensa, na expectativa da acção que lhe dê consistência, combinando diversas legitimidades que se cruzam com a do voto, nomeadamente as da participação e a da deliberação, que se afirmam - como vemos todos os dias - de formas cada vez mais inesperadas.
É por tudo isto que fico intrigado, e inquieto, com a frequência com que Pedro Passos Coelho tem prometido "ir além" do que o Memorando assinado com a troika estabelece. A margem de manobra é muito estreita, a situação não permite voluntarismos iluminados de qualquer espécie. Pelo contrário, ela aconselha muita prudência e, sobretudo, que antes de se olhar para o "além", se olhe com um lúcido realismo ali para o lado, para a situação da Grécia, de modo de tirar as lições que se impõem. E a tempo!".

Manuel Maria Carrilho, DN (texto parcial), 16.06.2011