segunda-feira, 13 de junho de 2011

A verdade escondida (parte III)

«À falta de melhor, os portugueses sempre gostaram de oratória. De oratória sacra, no "antigo regime"; de oratória parlamentar, no liberalismo e na República. Os "tenores" de S. Bento (José Estêvão, Garrett, Rebelo da Silva) tinham uma popularidade sem relação com o seu poder real. Nunca, ou quase nunca, disseram coisa que valesse a pena. Mas falavam bem e enchiam as galerias de aficionados e de senhoras. Esta sexta-feira, em Castelo Branco, parece que a tradição ressuscitou com António Barreto. Os voos líricos de Barreto não nos fizeram compreender melhor a situação do país, nem propuseram nada de prático ou de útil. O que não era, se calhar, o seu propósito. Não interessa. Pelo menos, comoveram o público letrado, que precisava de comoção e consolo. No dia seguinte, os jornais glosaram dois temas. O primeiro foi a diatribe de Barreto contra os políticos, uma velha maneira de aquecer a alma do país. Segundo percebi, para Barreto, os políticos pedem ao bom povo (com "facilidade" e "oportunismo") "sacrifícios" que eles próprios, no seu ofício, se recusam a retribuir. Pelo contrário, andam por aí numa "crispação estéril", em vez de conversarem e discutirem entre si, com verdade e, sobretudo, com "cordialidade" (esperemos que não aquela cordialidade com que Bernardino afogou a República). Além disto, que por si bastava, os políticos mentem, não informam os portugueses, não os representam e não os dirigem. Pior ainda: sendo o nosso sofrimento o resultado da sua "imprevidência", é "indispensável" um "apuramento" de responsabilidades. Como, quando e por quem, Barreto não esclareceu. Em contrapartida, esclareceu que se deve mudar a Constituição, que, na opinião dele se tornou "anacrónica, barroca e excessivamente programática", uma ideia que não fica mal a ninguém e que se distingue pela sua absoluta impossibilidade. E voltou também à sua obsessão de infância, o círculo uninominal, a que atribui virtudes miraculosas. Nunca lhe ocorreu que o círculo uninominal iria entregar a Valentim Loureiro e à sua estirpe a escolha e o domínio do Governo, como já entregou as câmaras (tirando Lisboa, o Porto e mais meia-dúzia por aqui e por ali ) e os partidos, sem qualquer excepção. Mas presumo que Barreto não liga a esses pormenores terrenos. Um homem que acaba um discurso oficial tratando Portugal por "tu", numa longa fuga lírica e tremelicante, está com certeza destinado à santidade cívica.»

Vasco Pulido Valente, Público

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